segunda-feira, 31 de março de 2014

ensaio sobre virgem

a mudança tensa, maleabilidade pesada, duma força outra, duma força imóvel, arenosa, nem tanto, lameada. quintal das vestes, corrente no tornozelo, sábios os íntimos, e a feitura das nossas pequenas contradições -- ai, que teu amor, esse nada quase, esse nem-amor, esse todo quase nada -- certeza nas quatro paredes, apenas se me sussurrares no ouvido a palavra sonhada. martírio, cruz, ódio abaixo de zero e o poder da palavra voltada para dentro (hermes e as mensagens que nunca enviou aos deuses, sua sabedoria reservada). sabedoria que de dentro para fora é busca da perfeição, desoladora vontade de. única mulher, sim, sensações táteis à flor da pele, mas, arredia, ou entregue, suja-se apenas aí, para ter prazer no banho -- quem fora você no carnaval? que seja fidedigna sua vontade, mas, por favor, que não me digam "segura minha mão e leva adiante", sabendo que não há instante em olhar pra frente, posso compreender lograr da sorte das circunstâncias, mas o suor é a gota máxima do sossego, teu remédio é molestar minha visão prática -- mas por favor, peço além disto, não me peça para dizer palavras de afeto líquido, essas derramam-se, indignas, desvirguladas, sem acentos; prefiro que saiba que aqui guardo o nosso destino na palma da mão, nossas, dadas, até te posso soltar mais adiante, e derrubar todos os livros da estante, assustada, arredia, desregrada, desgraçada, para que faça nova ordem, reversa, apenas num glossário de cálculos onde me encontro, refazer a perfeição buscada, e a mão, esta, lavarei, para que sequer da tua sujeira lembre a memória.

eap

quinta-feira, 13 de março de 2014

[forçado]

definição una das minhas qualidades
é uma coisa difícil,
entretanto, lista-me mil defeitos
que te esbanjo um prato esborrotado
de cascalhos e frangalhos --
carne purulenta, varejeiras a granel.

mas, ei, auto lá: sou o único que os digere
de modo diário, lambendo os beiços
com o paladar saciado de embriaguez;
me sangro a pino meio-dia,
cantando e contando a todos
minha lacrimosa e invejável jardinagem,
podar as ervas daninhas, agarrado aos espinhos
num abraço de todas as dores,
salada perfeita para dias de regime, vê:

fungos de meu pulmão, minha baforada
lúgubre, mas, não macabro: querela de família,
sessenta cigarros por semana, sessenta mortes diárias,
e um sorriso verde, preto, entumecido de saliva
que da boca cardíaca de um anjo já me foi ensinado,

que nome aguar com versos decadentes?
para começar a florescer as menores rimas
e anedotas com a palavra chiada da tevê da noite insone
eu diria que tudo é íntimo, ínfimo, pífio:
eus invetados pela obrigação de uma dor
que já virou piada.


eap

terça-feira, 11 de março de 2014

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vivemos como dá: sem dar, nem receber.
lições minhas de gratuidade na vida.

segunda-feira, 10 de março de 2014

partida de futebol


times: presídio zona norte x presídio zona sul. começa o jogo, z. norte faz o primeiro em cinco minutos, z. sul empata, jogadores da z. norte reclamam de impedimento, juiz rebate, diz que não, prossegue o jogo: z. sul vira, aos onze, nova reclamação e fim de jogo aos vinte e dois do primeiro tempo.

resultado final: zona sul 2, zona norte 1, 4 mortos e 3 feridos, incluindo o juiz e a bola, ambos por facada.

eap

lolita

é preciso sempre:
ter certeza das coisas.

hoje vi-te: dalgum modo,
o ontem fora crucial
em deixar-me livre
das pernas batendo,
do coração bambo,
da espera nervosa,
da agonia calma
de ver o que por aí se vê:
calma, abre as portas,
fala manso, sobressalto,
contrário oposto
da minha disritmia,
desespero
de mãos e palavras,
naquele instante:
o mais jovem
versus
o mais seguro.
papéis invertidos
e na verdade:
nas mãos o gosto
de só saber que o corpo sente
a velha sensação
nova.

de novo.

eap

domingo, 9 de março de 2014

cozer o tempo

cada dia a mais é um encontro entre nós,
novelo de lã onde as melhores coisas do mundo são sobrepostas
pelo enleio de nossa história
-- hoje em dia, quem reconhece quem?
nas horas que se fazem mortas,
no inferno que nos torna santos,
quisera eu que na medida do absurdo
nos transpuséssemos frente a frente
ainda resgatando uma corrente que
num peito se prende ao gancho
do peito de outro.
sorte que o que nos une
é carne, tripas, nervos, tudo enlameado,
encharcado, entumecido de um sangue
que bombeia de um ao peito do outro,
vitelina ligação, mas têm-se que haver
o momento do corte, bisturi e gaze,
algodões, alicates, tesourinhas, agulha e linha:
pende arrastando no chão,
e quando dá-se por si, o corpo regenera
e então você guarda aquela dor dentro dos botões:
"deixa disso rapaz, pra quê um palco
para lavar inteiro com lágrima?
faz delas antídoto e veneno
para recompor e cicatrizar tua ferida
-- um dia inflama, outro não;
um dia sara, outro mata"
me disseram, suportando minha surdez
e minha cegueira, minha natural loucura
em não se deixar descansar,
mas o peito bombeia sangue, a mente ideias,
na medida do caos com que minhas funções
mais orgânicas
foram acostumadas a produzir -- por que tão caótico?
no fim, depois do "acaba", antes do "enfim",
(essas medidas didáticas que nós poetas criamos
para botar ponto final no assunto que nunca finda),
cai-se de si que sonâmbulo é que se costura
tal laço,
não nascemos assim,
e assim caminhamos,
até o próximo surto de sonambulismo,
e é por isso que ando sempre
com minha agulha e linha nos bolsos.

eap