quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Antropofagia do Rock Nacional - Lírica e Forma (breve análise)

Oswald de Andrade falava em seu Manifesto Antropofágico sobre os rumos da poesia brasileira a partir da semana de 22. Se alimentar de toda e qualquer influência, miscigenando e criando a identidade própria (ou quase isso). Caetano fez o mesmo 40 anos depois com a Tropicália e essa relação entre a música e a poesia de reflete de maneira muito saudável no Brasil - e, claro, o rock nacional, em algum momento iria cometer esse canibalismo de maneira muito positiva em algum momento (como de fato acontece hoje).

O rock nacional, aliás, o roque, se divide de tempos em tempos em determinadas categorias e subgêneros que fogem ao nosso olhar (ou audição).

Recentemente estava pensando nessa coisa enigmática que são esses movimentos invisíveis que surgem de tempos em tempos e que só nos são apresentados quando alguém enfim explana essa visão de fora, essa macro visão amalgamatica das coisas.

Existe a geração 80 que levou nas costas algumas bandas que ainda hoje são históricas, como Os Paralamas do Sucesso, ou o Lobão, que, para além da pessoa escrota que se tornou (assim como Roger do Ultraje a Rigor), é um músico inegavelmente talentoso.

Dentro daquele momento podemos pinçar algumas tendencias, como uma clara influência do punk/pós punk principalmente na vertente brasiliense, da Legião e até da Plebe Rude - ao passo que você tinha um interesse estranho com o ska.

Destaque, também, para a New Wave que provavelmente estabeleceu maiores traços afetivos com essas pessoas que hoje se encontram na casa dos 40 e poucos. A Blitz, pra mim, é um exemplo claro disso, mas em geral, a própria New Wave como extensão do que foi o Punk também deixou seus traços em algumas bandas. Aqui e ali você pode enxergar um The Cure (Legião Urbana tem trechos de "Será" que para mim são claramente retirados de "Jumping Someone Else's Train", assim como "Tempo Perdido" é um beijo descarado nas guitarras do Johnny Marr, do Smiths) um B'52s e por aí vai.

A efervescência política e, principalmente, a abertura democrática permitiu que esse soft punk vindo de Brasília existisse, mesmo que se comparados com o eixo Rio-São Paulo eles sejam algo bem menos agressivo, até, diria, ingênuos.

Mas o que se observa aí é um flerte com uma identidade estrangeira. Poucas são as bandas e artistas que trouxeram algo fora desseb padrão, você tem aí, registros mais antigos de Secos e Molhados, que mesmo com a sua estética Glam, eram diferentes - ou ainda, Os Mutantes que surgiram na efervescência da Tropicália.

Claro, óbvio, que já naquela época tinham bandas como a Patife Band que não soam como nada já conhecido até então, ou ainda Os Mulheres Negras, Picassos Falsos que são casos a parte. Mas aqui trato do mainstream (afinal até no cenário internacional existem esses pontos fora da curva, como, por exemplo, Frank Zappa).

A tendência, então, se manteve até os anos 90 quando, enfim um subgênero emergiu ao mainstream, trazendo elementos regionalistas e enriquecendo a lírica para além dos lugares-comuns que só eram muito próprios da MPB que foi o manguebeat. Chico Science elevou a outro nível uma mistura de maracatu com hard core, refazendo o trajeto iniciado com Caetano na Tropicália, quando misturou elementos em sua lírica e misturou Brigitte Bardot com Coca Cola e bomba atômica - ou até Raul Seixas, como minha amiga salientou, que no início misturava Luiz Gonzaga e Elvis Presley. Entretanto, a mistura se aproxima na lírica e na forma, com a Tropicália, mas ainda assim com algo muito próprio e que, apesar da morte precoce de sua principal voz, sobrevive como parte de um movimento que daria forma e faria escola para uma série de outras bandas. Mas para que isso aconteça é preciso estar atento a duas outras bandas que surgem mais ou menos na mesma época: Pato Fu e Los Hermanos.

Pato Fu tem o mérito lírico de elevar o nível de suas letras sem perder certa doçura e simplicidade, sem falar no mérito técnico de seus músicos. Los Hermanos, por sua vez, na forma experimenta a marchinha, o hard core e faz um primeiro disco excepcional.

Essas duas bandas seriam responsáveis por ditar um norte que seria seguido ao longo de toda a primeira década do século XXI e que pode ser sentido até hoje, numa criação de identidade própria da música que, cada vez mais aproxima o roque da MPB. Ao longo dos anos, nomes como Mombojó, Móveis Coloniais de Acaju ajudaram a desmembrar movimentos iniciados lá no finzinho da década de 90 que trouxeram, inclusive artistas que olham para a MPB com um pouco mais de vontade e fazem dessa a sua base, como Cícero, Céu (antes de flertar muito mais com o reggae), Tiê, Tulipa Ruiz, Jeneci, Silva, Phill Veras, Ana Canas etc.

Contribui para isso o advento da internet, claro, que ajudou muito a divulgar o trabalho de artistas cada vez mais diferentes e que viriam, até mesmo, a elevar a nível lírico boa parte das bandas de roque propriamente ditas e aqui podemos inserir bandas como Metá Metá, Carne Doce, Ventre, Lupe de Lupe, O Terno, Karina Buhr, Cidadão Instigado (mesmo que esta seja um caso a parte) etc.

O fato é que, hoje pode-se dizer que, resguardadas as devidas proporções e, principalmente, interesse por parte do público, dada a democratização da internet, hoje o Brasil dispõe de uma vasta gama de artistas que fazem roque com um elevado nível lírico, principalmente levando em conta o flerte desses artistas com a MPB (e a inevitável influência desta com a prática literária e poética brasileira) e, não mais macaqueando e emulando gêneros e subgêneros estrangeiros.

Mas, que fique claro: não que isso necessariamente seja critério qualitativo, afinal, os anos 90 têm uma grande quantidade de bandas que são inegavelmente boas e que ajudaram a construir bases pro que viria na década seguinte e que cantavam majoritariamente em inglês se valendo do lo-fi de bandas como Yo La Tengo, Guided by Voices e Pavement. Cigarettes, Pin-Ups e mais notadamente, Pelvs.

Mas isso já é conversa para outro dia.

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