sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Máquina em Verde

Ilustração para o livro "E Agora Qual o Caminho?" de Antônio Olinto Ed. Escala 2008





Passeava. A máquina era lembrança vaga, difusa em meio a neblina do pensamento. Mas passeava entre ela e as plantas. Mas hoje, a máquina era mais presente. Máquina e concreto puro. Fumaça, máquina, concreto, ar, puro e impuro.




Mas passeava. Há quanto tempo eu não utilizo esse verbo: "passear". Sair por sair, pôr pé fora do mundo, ver, apreciar, cheirar, sentir, degustar, fotografar com os olhos, apalpar, sorrir. Tudo definido no verbo: passear.



E passeando, sempre me encontro, mas me encontro me perdendo. Conhecendo pela primeira vez qualquer lugar que se valha de ter sorte em sê-lo -- desconhecido. Eu que não acredito na pouca coisa que se soma a vida adulta! Da minha cabeça ninguém tira: é tudo passageiro. Beleza mesmo só naquele tempo, que gente muita, que faz lama, diz e desdiz sem vontade -- preguiçosa vontade, digo. Que dizem:



-- Eu era feliz!... E não sabia!



Daquele tempo, fruta do pomar, do pomar que é pé, do pé que eu subo, com meu próprio, mastigava com força, sem olhar, analisar, pois que era natural, do pé. Fina beleza natural, que só tinha no quintal florido da casa de minha avó. Lama no pé, coisa que menos me importava. Hoje: é tudo tão certo. Eu sinto falta das pequenas coisas. Sinto falta das coisas erradas de épocas passadas, que hoje não é mais: pura criancice!



Dois anos se somam, mais um e mais um. Quando se vê, desponta na garganta a fruta que tanto se comeu, e aí não tem mais retorno. Gosto hoje de andar entre os prédios, galgar os andares mais altos, ver que de tão belo há na cinza que se soma em meio ao trânsito... Que é que há de belo? Eu gosto hoje, mas não entendo por que. Mistério Cinza-Fumaça.



Quando de uma dessas perdições para que me achasse, deparei-me com um labirinto.



Tentar achar-se em meio ao pensamento levou-me a velha casa de minha infância feliz. Lá, com nada além de um buraco em meio ao vazio deparei-me. Fora decepcionante ver as ervas-daninhas a cobrir a casa, as paredes, as velhas árvores, que se acinzentavam -- ou seria o meu labirinto? Caminhei pelos arredores, desvencilhei-me de ramos e plantas que caiam de pés de goiaba, tentei mastigar uma madurinha madurinha, mas o gosto não era o mesmo. Calei-me por instante, ao ouvir o surrupio de um pé que galha quebrou. Avistei ao longe a casa da máquina, que ligávamos para que do poço profundo subisse à caixa d'água água que nos lavasse.



Lá ia o barulho.



A voz que cintilava o momento sibilou baixo, como uma Iara, como Vênus, a seduzir. Seduzindo. Talvez, esta voz era quem ia a levar-me gostoso ao embalar da rede, do sorriso quase choroso -- e me lembro. A voz crescia, o motor que há muito não funcionava, repuxou com sofreguidão a água, batucou, tilintando alguma peça mais frouxa, para, por fim, cumprir seu ofício maquinal. E quando de seu movimento, ainda ouvia a doce doce voz -- naturalmente feminina -- que da casinha emanava; do resto destoando, um cheiro exalava, que era flor de laranjeira. Beleza rara, flor em meio ao lodo e aos bichos mortos, pequenas criaturas. Avistei seus longos cabelos, era mulher morena que por trás da máquina se escondia; em meio a ramos, em meio a flores, em meio ao lodo, do cheiro de ferrugem, da máquina que descascava sua tintura verde - ainda que pouca, remanescia.



-- Saudades de você, ela disse e a voz me tragou. Tentei, pensando precisar de minha ajuda, ajudar. Por ajudar, acabei tragado. E num mundo outro, estive a fuçar como um cão que lambe as feridas do leproso, uma beleza que nunca mais havia visto, desde tempos vindouros da minha -- aquela -- infância. Saudades que tinha, que por tragado ter sido, nem faço questão de voltar. Tudo é cheirando de desejo.



Desejo Sôfrego-Verde, em meio ao lodo que me arranca a face. Já não sou o homem que sou, apenas a criança viva dentro de um adulto morto que sou -- julgando-me vivo.



Hiato breve, mas de volta.

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