terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

trecho: romance sem nome

"[...] tudo dela tem algo de me rememorar aquele passado fadado e destruído – o meu quarto, aquela ideia imbecil de levantar a casa na árvore, e num instante posterior saber que na temática de nossas pequenas anedotas infantis recebíamos claramente o abraço como algo mais que natural. seu braço ali para mim era uma tarde inteira sentado à sombra de alguma árvore onde eu pudesse descansar minha cabeça cansada de lembrar das coisas que eu só queria esquecer pra sempre (não uso as palavras “coisa” e “pra sempre” com frequência, mas, deixa um instante que minha mão se mova por sua própria vontade e não somente pela necessidade de parecer outra coisa que não sou). os seus dedos deslizavam pelo meu cabelo e tudo nela cheirava à fruta última madura que na sua boca houvera dentada precisa, e seus dentes, brancos e certos, e retos, em comparação com os meus, tortos, amarelos, era um contraste de se fazer terror, esses filmes alemães expressionistas: poder-me-ia classificar como um nosferatu repugnante, como todos os meninos o são na visão das meninas, e ela ellen indefesa pela mão de sombra que avança pelo quarto – nunca entenderei a sedução, e, de repente, é como se o passado se misturasse com o presente: essa mão não é minha, essas garras negras que pela parede envolvem seu corpo desnudo também não, é outra extensão – se perguntasse para ela agora a definição mais precisa do que fui ela diria: doce. quatro letrinhas, quatro. e por elas fiei-me por quase toda a vida – ah, ela não poderia ser mais contrastante. não, não é que na língua seu gosto fosse apenas salgado, mas também, e além disso, ácido e purulento debaixo de meus dentes, entre a bochecha e a gengiva – a língua lenta lambe o lábio, deixando atrás de si a espuma espessa do gozo, e o sorriso dos dentes delineados estica uma linha e bolhas que se somam nos cantos da boca. o meu amor supera o esporro porque lembro de suas mãos, e do beijo com gosto de fruta, o primeiro, o único por muito tempo e o segredo que por ele permanecia, cê me mostrava alguns segredos que por muito tempo demorei a aceitar, hoje, acho vulgar outros peitos, mamilos, a buceta, o grelo, o cu, o dedo enfiado, a língua, o pau, duro, pendendo para os cantos e comandando e sendo comandado, enfiado, solavanco, cavalgada de bicho doente, mordida – sempre fui tão doente assim. [...]"

eap

sábado, 22 de fevereiro de 2014

paisagem móvel ii

para j
teu corpo colore uma tarde
com tinta-fábula, estremece minha parede
e no fim da noite prossigo,
amado e cúmplice, das enevoações do ser,
não, porém, refestelando-se pelas amostras,
e te conservas em casa, ou noutras ruas
para que o gosto do osso exposto ao sol
não venha assim a perfumar minhas narinas.
não pareço são em procurar-te, nem assim o quero parecer
(buscas são chaves duma loucura
mui particular)
mas tuas agruras quero estar ouvinte, senti-las,
faz parte da paisagem com que te fizeste, certa cor
de queimada do sol, de ressequida pelo tempo,
de amarelo-ser: pois agora te tornas outra
e vou admirar
o quadro pintado, revelado, austero, sincero.
nem pluma nem brasa corroi tua superfície
por si só profunda em tudo.
domino-me duas vezes mais - enlameadas as mãos
na tua pele-barro, tua voz-veludo, tuas mãos de nuvem
teu existir criado -- onde essa claridão some,
sou renome pintado
na borda inferior do objeto em que te fiz arte
hoje andas pelas ruas,
se andas, nelas te fazes vistosa aurora
apreciam-te uns poucos - outros amantes
e na verdade, sou moeda de troca
na hora em que trocam-se os olhares
*
tua paisagem se modifica
e nela fica de lembrança a outra coisa
da qual não evidencia tua convivência caseira.
claquete, vislumbre do último ato,
sinfonia em ré menor, tristonha
atenta às tuas olheiras,
o dia avança e a mente regressa
pelas calçadas outras
onde outrora uma mulher se jogou do quinto andar --
adivinho teus passos, e o olhar pro céu.
te refaço novamente.
eap

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

paisagem móvel

retratos vezes mil nas janelas a mil
quem vai na onda dele se perde
e maiores são as notícias - espera:

vamos voltar do início, refazer o poema. calma, respira, o ônibus tá em linha reta, seu pensamento também. as notícias nem são notícias, são os outdoors, a gente não pode seguir adiante, ele vai dobrar, ela vai descer, e 

na alça da blusa dela,
as onças se abocanham,
podem andar pela extensão
de toda a savana de pelos
dos quais o seu braço é feito
na nuca - calma:

não tem mais muito o que dizer, mas os versos surgem até

do bigode dele
acompanho a vazão que dá
as idas e vindas que sua vida
cuidou de fazer - passa o troco
e no cofiar dos dedos,
percebo-lhe vaidade
para além dos anos que lhe vêm
para agora dos anos que lhe vão.

"no vão das coisas que a gente disse
não cabe mais sermos somente amigos
e quando eu falo que eu já nem quero
a frase fica pelo avesso - meio na contramão"

de repente entra o trecho da música da ana carolina no meio da coisa toda e tudo se embola feio, mas nem tanto - percebo de onde vi, and I drag behind, depois de descer do ônibus - o último cigarro da noite,

quem sabe da vida inteira,
estrela essa que carrego
na ponta dos dedos,
iluminando apenas os meus olhos
enquanto vai-se apagando
por dentro do que esquenta
(a morte da estrela-anã vermelha)
eu astrônomo todos os dias,
conto no cobertor, e no buraco do teto
todas as estrelas que posso

agora, sono, e quanto mais penso mais vontade dá de pensar, e pensando associo, como prosa, mas saem versos da ponta dos dedos, como parar, eu na-

o til nem teve tempo
de se sobrepor no a,
foi instantâneo, e, mesmo
depois que o a se forme em
inúmeros zês pela madrugada
meu pensamento continua
dissociando o intangível das memórias
que nunca tive,
da tesoura e do escorpião
e de todas as coisas
que num dia
fiz verso do avesso.

eap

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

parábola da vontade e da constante


aos vivos

nasceu em tudo e em tudo se fez praga.
hoje seu relicário é uma lembrança amarga
de dias em que a mesma cor com que lhe pintaram
transferiu a ele uma dada peça incolor
para colorir seus anseios de humanidade,

este homem não pode saber
que a vida corre a léguas de si

que a solidão faz peso na porta
e não deixa ninguém nem entrar
nem sair.

simplesmente a liberdade é algo que
para o coração não faz miséria,
e na veia ele sente, e sempre, e só,
fadado o presente, o futuro, o nó:
eu quis ser deus, tanto quanto pude
e na imagem de jesus cristo
recobrar algo que assim se assemelhe
de plenitude.

nasceu.

e não poderia ser mais santo
que judas.

nessa fiação de amores inconstantes
pelo que há de concreto e mutável
areia movediça,
sonho que te lembra
algo tão real,
quanto o rosto que embaciava tua turva visão
de criança sozinha

quando a luz apagou,
quem te socorreu, amor?

nasceu, e com a leva de leves
de peso se fez carregado,
no cais dos contêineres, estivava
sacas e mais sacas de pesado fardo
de saber que o mundo é feito
do deixar ir.

mas não deixa,

carpinteiro que é,
não acredita na frigidez do aço
na sua imaleabilidade,
na sua triste sina de ser o que é:
prefere raspar a curva
mais dolorida que seja
toda noite
para adaptar-se ao peso,

e, frágil, sim,

mas, deus, porque tudo é assim
de se acabar,
e de se acabar é que somos feitos
de nascidos, transformados, mutabilidade
e mais, e menos, e dor,
e peso:

caiu pobremente no seu peso
de adaptar-se,
as pernas estremeceram,
ninguém saberia agora,
se a vida lhe pesou
ou se a adequação lhe derrubou

antes que caísse por sobre a própria coluna
e olhasse frio e calmo
como nunca
para a obra - e esta, leve, impassível,
entretanto,
quebrada,
lhe retribuísse o olhar:

- quis de ti o peso
de mim quiseste a beleza,
onde iríamos parar
senão na firmeza
do desequilíbrio constante?

eap

domingo, 9 de fevereiro de 2014

doesn't remind me

sobretudo me incomodam retratos familiares conturbados. e não necessariamente precisam ser conturbados, mas retratos familiares de um modo geral.

pego-me às vezes sendo vítima, e nem sei bem se essa seria a palavra mais adequada para isso, de objetos de estudo puramente freudianos. é estranho ver-se desnudado por teorias - e dói.

odeie quem odiar, mas sou canceriano, ascendente em touro, lua em libra, denota uma personalidade pacata e sensível. mas o lado canceriano fala alto no que diz respeito à memória, esta, nem sempre agradável, mas, penso, responsável por uma sensibilidade pelo que se vê aqui nestas páginas desde 2009 e que vem de mais tempo, desde os treze.

vejo: os laços e desenlaces familiares e suas consequências sempre foram temas que me marcaram - e a maneira como o cotidiano de todas as pessoas é afetado por relacionamentos. tudo na vida gira em torno do que dentro da instituição afetiva criada com o outro gera: personalidade, atitudes (sejam elas quais forem), profissões, opiniões, igualmente - tudo. daí perguntarem o por quê desse apego a relacionamentos. ora, mas é disto que são feitos maior parte dos retratos cotidianos aqui expostos.

os meus mais íntimos sabem dessa fixação toda minha. e no quanto acredito piamente nisso.

quando penso por exemplo na figura de meus pais e em tudo o que se desenrolou na separação deles (sim, meio constrangedor, mas para que eu divulgue o que determinou este insight precisarei recorrer ao pessoal), foi responsável por lágrimas e mais lágrimas derramadas e olhos embaciados por filmes, músicas e livros que retratassem a figura paterna como provedora de algum desenlace - de cabeça lembro: estamos bem mesmo sem você (filme italiano do gênero drama, que retrata uma família conturbada pelo abandono da mãe), lembranças (sim, com robert pattson, em um papel talvez demasiado dramático, entretanto, final surpreendente, destaque para o papel de pierce brosnan), e, o que deu origem a esta crônica: o clipe de doesn't remind me, do audioslave, que retratou em síntese todas estas palavras até aqui.

no dito videoclipe vemos que tipo de destroços são criados com o pós-guerra (ao que tudo indica, a do iraque, ou afeganistão). uma criança que libera sua energia para suplantar uma dor que incomoda (vou escrevendo e achando cada palavra piegas, mas, que seja) no boxe.

ora, acho que é uma maneira de escapismo, jogar a fúria num esporte, adolescentes escolhem outros caminhos etc., mas aí denotaria uma outra breve reflexão de sociedade: lidamos com um modelo norte-americano de fraqueza, onde, como disse ariano suassuna, um jesus cristo modelo seria o superman.

que seja, tanto faz, não discordo, nem concordo - muito pelo contrário (risos). o fato é que: não é interessante como essas instituições nos transformam?, transtornam, também. de toda forma, ainda no assunto do que uma guerra pode gerar, vemos a figura de um soldado que nos diz o seguinte (naquilo que acredito ser um dos primeiros parágrafos mais legais da wikipédia:

" O Tenente-General Sir Adrian Paul Carton Ghislain de Wiart VC, KBE, CB, CMG, DSO (05 maio de 1880 – 5 de junho 1963), foi um oficial do exército britânico de ascendência belga e irlandesa. Ele serviu na Guerra Boer, Primeira Guerra Mundial, e na Segunda Guerra Mundial. Levou um tiro no rosto, cabeça, estômago, tornozelo, perna, quadril e ouvido, sobreviveu a um acidente de avião, escapou de um campo de prisioneiros, e mordeu e arrancou seus próprios dedos quando um médico se recusou a amputa-los.

Mais tarde, ele disse: 'Francamente,eu adorei a guerra!'"

não queria, sinceramente, que este texto se arraigasse pelas vias da boba demagogia sentimentaloide. vade retro. mas como não refletir e fazer paralelos?, ou então só uma mente paradoxal como a minha associa essas minúncias - mas, o tal videoclipe me conseguiu marejar os olhos (coisa lá não muito difícil), e fica-se aqui a indagação desta responsabilidade fardo que somos obrigados a carregar. nem sei ao menos a quem se há de atribuir uma culpa - e se há.

enquanto não se encontram formas de se saber o que por aí vai, deixo aqui o aviso prévio de que freud ainda vai incomodar por bastante tempo com obviedades. vamos à guerra ou ela vem a nós?

eap

ensaio sobre libra

meu amor é racional - não posso doar-me sem doação. cada poro venusiano imposto na frigidez da racionalidade tende a fazer-me total entrega a prazeres que subjazem a cara, que apenas logra a vida entregue em cheiros e gostos. falava-te dos poros, dos meus meneios de cabeça, as mãos insatisfeita com a falta de perfeição duma hora negada - lembro do amor como ele o é, entretanto entre razão pela porta da frente, máscula, sou apenas a versão livre de um amante veneziano. cobro nada que se cobre e na guerra faço-me juiz, mediador, embora acredite que a verdade seja necessária. equilibra-te, milimetricamente somos obrigados a comparar-nos, mas, ora, quando olho em derredor, qualquer cor mais forte arrefece os olhos, cansa, desgasta - e no final das contas perco minha calma inata de ser ativo na arte de amar em demasiada constância lisérgica - all you need is love, disse um digno representante, mas olhai pelos olhos dele, meus olhos também: não existe no mundo equilíbrio possível, exagero sem comedimento. alegro-me com a ideia do caos como obra divina.
eap