domingo, 15 de abril de 2012

Crimes de Autor

Um professor falou que deveríamos ter histórias para contar, e disse mais: que as maiores literaturas do mundo são feitas em países onde morreram milhares de pessoas, citou, inclusive, dois exemplos claros disto: a Rússia e a Alemanha. E complementou,

-- Querem fazer boas histórias? Matem pessoas.

Não pude discordar. E fiquei pensando que seguia o caminho certo, falava de mortes, de mortos e de morrer. Um dia vi que escrevia nesta temática e tive medo que as pessoas que porventura lessem os textos confundissem com um autor que repetia temas, histórias, que calcava o sentido das histórias na narrativa fatídica. A editora para a qual escrevia adorava, mas eu queria ser bem mais que um mero escritor de livros pulp fiction que vendem nessas bancas vagabundas do centro -- estudei oito anos para nada? Sequer usava meu nome. A editora patenteou meu pseudônimo: John Cole. John, de John Coltrane, Cole, de de Nat King Cole, meus músicos de jazz favoritos.

Olhava os jornais com relatos de mortes, com assassinatos macabros, tudo aquilo me inspirava, como se o escrito jornalístico penetrasse na minha mente e eu começasse a labirintar pelos crimes; como fosse eu.

E no entanto essa concepção me subiu a cabeça de tal maneira que mergulhei de vez no conto psicológico e, afogado nas emoções profundas dos amantes e adeptos da catarse e da epifania, acabei por grudar-me a esta forma bajuladora e ultrapassada -- na verdade, nada da arte morre, apenas se transforma, se renova, se aproveita do que já foi feito e mescla em segredos de liquidificador, batidos todos nas misturas das letras, o resto, fica por conta da mão do autor.

Consegui uma editora que me deu notoriedade. E as histórias pipocavam suficientemente. Dois anos de euforia, dois livros de contos e um romance na mesma linha.

Minha mão, porém, embora tenha se dado com a nova concepção de fazer histórias, exorcizou alguns fantasmas, entretanto criou outros, que foi o fato de não poder mais escrever. O papel em branco era alimentado pelas parcas palavras que eu compreendia ter sentido, mas, na cabeça, era tudo enrolação. Não acreditei em nenhum instante no que escrevia. O cesto de lixos amontoava tentativas. As canetas perdiam sangue -- e era o meu sangue. A editora ligava, cobrava, clamava -- onde o novo livro? As unhas muitas roídas. Os cigarros muitos por dia -- tudo em abundância, menos ideia e inspiração para dissertar.

Um dia, porém, bebia num bar, quando se achegou a mim uma moça jovem, com um livro meu em mãos e conversou comigo muito tempo. Disse ser fã de meus livros. Agradeci, lisonjeado. Mas ela não conhecera John Cole. Graças a Deus. Baforava seu cigarro na minha cara -- sabe ela que gosto disso?

Tive, pelos seus sinais, a certeza de que ela queria que dormíssemos juntos -- uma mulher transpira diferente, se move diferente, sorri diferente, liquida seus fluídos diferente. Eu posso ver pelo lábio vermelho vivo entumecido de saliva o que ela deseja de verdade.

Fomos ao meu apartamento. Viu pouco ou quase nada do que nele havia, os olhos fechados só procuravam tatear as certezas do meu corpo, meu pau na sua mão, seus peitos nas minhas, uma raiva em retirar toda a roupa, e o amor feito à pressa, e não sei ainda qual sentimento forte, mas, enforquei-a com força, a tal ponto que sua língua saiu fora da gaveta, e lá ficou, os olhos vermelhos, saltados, esbugalhados, gordos feito os de um porco.

Não.

Sequer me desesperei. Sabia bem o que fazer. Enchi a banheira com um galão de ácido fluorídrico há muito esquecido e coloquei o corpo cuidadosamente na banheira. Observei o corpo borbulhar lento, até ser diluído numa pasta amarela cheia de pigmentos vermelhos, que borbulhavam até tomar todo o líquido, e a substância resultante, um líquido grosso e fedorento, reagiu com um pouco d'água que pus na banheira, portanto, menos corrosivo, e, por fim, desceu pelo ralo. Olhei suas roupas no chão, ensaquei-as, guardei num lugar, vi seus documentos.

A velha face assustada na identidade.

Aí sim, veio o tremor. O ócio criativo desceu até a ponta dos dedos, e quando vi, comecei a produzir uma história aos velhos moldes. No mesmo dia, uma pequena novela fora produzida, enviei os originais para a editora que retornou contato dois dias depois, parabenizando pelo trabalho, que impressionou os editores, que viram uma mistura do meu antigo estilo pulp, entretanto com uma qualidade superior.

-- Até parece que foi você quem matou essa mulher!, disse o editor chefe.

E todos riram, menos eu.

***

Uma semana depois, estava num café. Vi o jornal que punha assim uma notícia:



Tomo o café, acendo um cigarro; lusco-fusco de luzes, uma moça senta ao meu lado. Ela tem um livro meu nas mãos. A velha face assustada dos crimes do autor -- a morte num beijo, a morte num livro.

-- Fuma?, acendo seu cigarro, ela bafora em minha cara. Sabe ela que gosto disto? E eu sinto, pelos sinais dela que ela quer dormir comigo. Sua boca, seus cabelos atrás das orelhas. Eu sinto, eu distinguo os signos femininos.

eap

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