segunda-feira, 16 de maio de 2011

Garra Negra


"Zerkalo" ("O Espelho"), de Andrei Tarkovsky




Não sabia quão cansado estava o marido, por isso morreu.

Não era sem tempo; tinha na sua ficha diária de reclamações mentais do marido um amontoado de azucrinações que lhe deram dor de cabeça que lhe fez ficar assim, nervoso, tremendo de raiva constante. O marido, cheio de horror, sabia que seria preso, por isso, abriu um buraco debaixo da cama, jogou o corpo de cabeça roxa lá dentro, tampou e cimentou o buraco.

Sabia que a qualquer momento ela estaria ali de volta. Garra negra a arranhar as paredes, cheia de ódio. Ficou na cama sem dormir. Decidiu que trancaria o quarto para sempre, e assim o fez. Passou a chave, cheio de remorso. O sofá mais parecia um envólucro de memórias suas com a falecida que uma cama. Lá foram vistos filmes e mais filmes juntos, muitos beijos, muitos aconchegos, suores derramados. Se o sofá pudesse falar... Era da casa de sua mãe, acompanhou a vida amorosa dele, o marido, desd'antes de conhecer a esposa morta. E dela tinha visto bem mais que de outras. Pensou no quanto seria reconfortante voltar àqueles tempos, quando ele e ela eram outros; ela, linda, cheia de vida, caladinha, recôndita em sua timidez, flor de pudicícia, morena-jambo, perninhas roliças e cintura fina. Uma teteia. Ele, um galalau que esforçado era em mostrar o porte atlético e vigoroso de jogador de fim-de-semana que era em verdade, o sucesso do bairro, o papão da rua de cima, o neném da mãe. Hoje, assassino, ex-marido triste, de tanto ouvir da mulher reclamações diárias. E olha que nem tinham filhos, que nem os vizinhos, gabavam-se por isso, pois, os vizinhos se estapeavam na frente das crianças que eles cansaram de acolher. Tinham-nos como filhos que não puderam e nem queriam ter.

Parou um instante de pensar no que foi e no que poderia ter sido. Deixou-se encostar a cabeça no canto do sofá, úmido pelo suor que lhe escorria madrugada adentro. Não pregou o olho, lembrando da paulada certeira que matou a mulher. Não precisou de nenhuma outra; o sangue espirrou na sua cara, na parede, na colcha de florezinhas, que compraram no centro da cidade. A mulher já caiu no chão toda cheia de morte, com a boca aberta e olhos. Tentou, em vão despertá-la, para só então tomar resolução em abrir o buraco debaixo do leito de madeira maciça.

A garra negra da mulher parecia chamá-lo, arranhando os vidros da janela do quarto. E ele foi, levantou-se de mansinho, cheio de temor, abriu devagar a porta e certificou-se de que no quarto não tinha nada. Lua azul brilhando na ínsipida colcha branca e anêmica. Sentou-se nela e começou a chorar arrependido, pensando no que iria dizer aos seus pais, à sua própria mãe, e como iria fazer para livrar, se disto. De repente, sentiu roer debaixo de si. Sustendeu o choro por um instante, antes de dar um pulo e afastar a cama para o lado, apalpando o cimento ainda úmido. Qual não foi sua surpresa quando viu a mão da esposa debaixo da cama sustendida para o alto a movimentar-se convulsivamente, arranhando as grades de proteção do colchão?

Começou a cavar desesperado o cimento que já começava a endurecer, quando de repente, não mais pôde mover as mãos: o cimento secara e sob ele, quanto que suas mãos enterradas ficaram, a mão da esposa e a famigerada garra negra seguravam o seu braço enquanto desesperado gritava e chorava, preso ao chão, segurado pelas mãos de sua esposa, que pôde ver ainda, na superfície lhe restou um sorriso intacto, e um pedaço de olho que lhe olhavam enquanto lá permancia, choroso.

E,a,p'

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