sábado, 6 de agosto de 2011

Fraternidade


I

Fui à contragosto deixar meu irmão à sua escola. Na verdade, à contragosto não tanto: mais porque eu não gostava mesmo de andar com ele, por tudo o quanto não somos. Qualquer vestígio de amizade é pura ilusão, pois que ele fora meu primeiro irmão caçula e de toda forma muito sofri desde seu nascimento física e moralmente. E qualquer coisinha, desde o olhar demorado à qualquer outra coisa era razão de nos estapearmos. A diferença entre nós dois era abissal: nove anos. Mas não é disso que quero falar. Pulemos como se pula corda para outro parágrafo.

Caminhamos eu, ele e mais um amigo dele que ia anedotando qualquer coisa ao pé d'ouvido.
Eles riam e eu ia escutando e rindo comigo mesmo,

- Meu, saca essa.
- Hum.
- O cara tava lá né? daí ele chegou pra dona gostosona que ele tava secando e disse assim, Ó, tenho uma proposta pra tu, aí ela disse, Sai, nem quero ouvir, daí ele disse, Escuta, vou jogar cinquenta reais no chão e tu vai ter que deixar eu fazer tudo o que eu quiser contigo enquanto tu apanha, certo?, aí ela, Certo, achando que o cara era doido, e que ia ser mole pegar uma cinquenta reais do chão. Não ia dar tempo nem dele olhar, né? Diz aí: ele num joga cinquenta reais só de moeda de cinco centavo no chão não?
- Porra, ela se fodeu, hein?

Lembrei que eu também não fui santo quando tinha a idade dele. Antes mesmo eu já sabia que interessava mesmo era o que a mulher guarda dentro da calcinha. Se tinha visto, vi porque meus primos me mostravam sites pornôs no computador, ou então mostravam revistas de "mulher pelada" para mim. Eu não olhava, pois caminhava à frente deles, mas tentava entender o que ia pela sua cabeça, que ânsia lhe movia até encontrar o que tanto se procura?

E ele só tem dez anos.

II

Um telhado avermelhado, absolutamente espaçado sob um sol impiedosamente brilhante de uma da tarde. O telhado tinha espaços entre telha e outra, o que deixava pequenas frestas de luz penetrarem no grande espaço que divisava salas de lado e de outro. Seis pilastras encobertas de azulejo branco cheias de desenhos e nomes sustentavam o local. Debaixo, mais abaixo, crianças correndo, e eu, irritado, encolhido na insignificância de minha invisibilidade, observava o correr das crianças, suas vozes finas a gritar coisas que eu não conseguia ou não queria simplesmente escutar. Observava seus movimentos.

Sobretudo meu irmão. Sua voz não era a minha, era outra, e no entanto viemos do mesmo ventre, e tudo em dez anos meus e dele eram tão diferentes! Ele parecia mais familiar com o ambiente, ao que eu me lembro, sim: eu era todo uma carranca, um estranhamento, uma sensação de estrangeirismo que nunca saiu de mim - eu experimentava da invisibilidade de outrora, e ela nunca havia surgido tão forte.

Meu irmão corria em círculos: era o mais rápido, o mais ágil, sempre um dos últimos a ser cutucado no jôajuda. Ele gargalhava insuportavelmente, era cruel a maneira como ria, como se achava, como liderava. Tudo o que eu não fora. Na verdade não havia crueldade naquilo tudo: eu é quem sempre achei que a crueldade estava em todo detalhe do mundo, uma conspiração irritante contra minha minusculice, minha pequeninês infeliz.

Olhei para suas sombras sob a luz do sol refletida na parede. As suas silhuetas inquietas eram um pouco do que sobrava para além dos gritos e palavrões. Eu lembro que vivi. Era ainda pura inocência, enquanto suas mãos se agitavam para o alto, num momento de quase silêncio enquanto se distanciavam. Os gritos iam junto, ficava eu novamente na minha perpétua invisibilidade.

Sobrou de seus pés, um tanto, um fiasco, um nada - e eu ali, atônito sob a perspectiva de que meu passado era outro. Este, não. Este nunca.

E,a,p'

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