domingo, 11 de setembro de 2011

Para as Próximas Gerações

“Fica um pouco do teu queixo
No queixo de tua filha”

Carlos Drummond de Andrade

Movimentar-se é sempre um grande desafio. Na maioria das vezes, nem queremos voltar de onde vamos. Sei que existem pessoas que vão e vão mesmo, não voltam, e que por onde passam deixam aquela marca irremediavelmente sua, fazendo com que as pessoas que lhes viram, ouviram palavra, ou apenas na memória ficou por um tal perfume, ou pelo gosto de algum beijo dado por algum eventual caso de amor. Sabe lá!
Meu avô era assim. Eu lembro que ele foi muito importante antes que eu conhecesse novos avós que escreviam as palavras que eu gostaria de escutar (sobretudo um tal Saramago).
Não. Não diria importante. Intermitentemente o via. Já inclusive o xinguei. Sejamos então bastante sinceros em relação a tudo.
Mas dentre as poucas palavras que trocamos nas festas de São João que ele organizava em frente à sua casa, que ficava até bem longinho da capital, pelos idos do Parque Luzardo Viana, soube extrair dele aquele ar de sabedoria, próprio dos velhos, patriarcas das famílias – e esta minha família do lado de meu pai, tem certa tradição familiar, que eu antes só achava haver nas famílias das novelas. Claro que não são milionários, cheios de intelectuais, ou que resguardam em si, um sangue lusitano, italiano, hispânico, daqueles que gritam nas mesas de reuniões familiares.
Nós gritávamos também, só para constar.
Aquele café da manhã de domingo era sempre um acúmulo de fofocas da família, do primo que iria se casar; da tia que nunca ia aos aniversários; daquele primo que longe morava e que não ligava, daquele que um dia morreu... Temas polêmicos, como religião, perpassando pelo avanço constante do cristianismo protestante dentro de minha família – sobretudo por meus primos – em contraste com o tradicionalismo católico dos mais velhos – no caso, minhas tias. Ou mesmo futilidades, a vida das celebridades, os filmes em cartaz... Eu sempre permaneci calado, observando, como um telespectador – como o telespectador – que sou. Apenas depois de um tempo foi que vim a participar destas conversas, que segundo me parece, veio mesmo lá dos tempos de meu avô.
Um dia, tantos meses antes de sua morte, soube que ele havia vindo desde sua casa até Fortaleza com os piscas-alertas ligados. Era um homem de passado rude, que, ruidoso que era, os filhos guardavam sempre na memória aquele Seu Pompeu que dava gritos estridentes pelos corredores da casa.
– Lili!
De Liege: esse era o nome de uma de suas filhas do segundo casamento, era o grito que eu costumava escutar – mesmo depois de velhinho, que era um misto de um grito carinhoso e avisando de que lá vinha uma hora de sermão. Sermões estes que se transformaram em marca registrada dos filhos, que passou para os netos e enfim, hoje, esperamos passar aos bisnetos, que ainda são pequenos, mas já falam pelos cotovelos.
Mas voltando ao caso do pisca-alerta ligado, ele veio por todos aqueles quase ou mais de dez quilômetros, eu acho, dirigindo sua Quantum, 1989, que substituiu o seu antigo carro – que os filhos insistiam que trocasse, pois que o antigo Del Rey era um estorvo em sua vida, e que naquela idade (por aí de uns oitenta e tantos anos, mas de cinco menos de noventa) não poderia ter mais estresses com carros. Seguiu Fortaleza adentro, passou pelos bairros até chegar à casa de sua filha, onde ela viu-o já chegar de longe com as luzes amareladas a piscar, e pôs-se a falar, quanto que ele, conservando aquela mesma rabugice dos velhos tempos, olhou para a atual esposa, balançou a cabeça, e disse,
– Foi Verônica quem deixou ligada esta porcaria... Não te disse, filha, que tu deixasse esse carro do jeito que tu encontrou?!
– Mas, Filhinho, o último que usou o carro foi tu...
– Cala a boca, mulher!
Os risos sempre corriam à vontade, e desta vez não foi diferente, pois que este não era ele? Era marca sua, deixada para trás e para frente por essas gerações futuras – todas movidas da pura rabugice. Sei que mesmo depois de doente, enfermo mesmo, sabia vez por outra das notícias de que ele era a mesma descarga de rudes palavras com a sua então esposa, até o dia em que viu até mesmo o finado Tio Aroldo, morto desde 1991, a chama-lo (outra característica desta minha família é ser muito crente em fenômenos esotéricos, místicos, uma religiosidade à flor da pele) para ter com ele um dedo de prosa.
As demências, delírios e alucinações que permeiam o pré-morte.
No dia em que morreu, sentados estávamos a relembrar aquele dia do pisca-alerta ligado, marcando todo um trajeto, chamando a atenção de todos – deixando ali sua marca, inconsciente, mesmo que sob os risos, riem até mesmo aqueles bisnetos que nem chegaram a conhecer a história, presenciá-la ao menos com a consciência do cômico. Mas na cabeça desta sua geração posterior, é inerente sua voz. Ecoa um pouco em nossas vozes um tanto de seu timbre e tom.

E,a,p’

Fortaleza, 04 de junho de 2011, sábado.

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