sábado, 21 de janeiro de 2012

Mersault


“Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver.”

Albert Camus – O Estrangeiro

*

[...] Whichever I choose
It amounts to the same

Absolutely Nothing [...]

The Cure – “Killing an Arab”

Fazem dois anos. Exatamente dois anos que volvi da França, e ainda tento entender porque o fiz. Voltar para este sol que assola a humanidade, tosta os miolos facilmente, e quem dera, eu pudesse jogar uma ducha sobre o sol com a mangueira com a qual aguo meu jardim. As lembranças me veem vez por outra como lampejo, o turco ali no chão, e eu me sentindo um deus, sem saber por que. A minha cabeça solta uma gargalhada frouxa e quase exteriorizo. Um remédio, gole d’água, sôfrega garganta.
Uns barulhentos vizinhos me chegaram a alguns dias. Tenho lá meus quarenta e poucos anos, mas tenho minhas leituras. Foi por elas que vim da França. Foi por causa delas que o Mojav deitou a boca ao chão, todo cheio de morte, todo cheio de nada. Por que? E eu não lembro. Talvez eu não queira lembrar. Fazia um tempo que procurava conformidade por ter abandonado meus estudos na França, a estudar o existencialismo. Sartre invadia minha cabeça, etc., assim como Camus – e como Camus eu me sentia. Principalmente... E minha cabeça não parece me obedecer.
Eles começam. Na verdade é um garoto de quinze anos. Ele tem um cabelo desgrenhado, branco como alma, delineador nos olhos, maquiagem, preto de tudo, como um defunto, como um morto-vivo. Vi-o uma vez, e agora entendo o porque, já que eles começam a tocar suas guitarras. Uma banda de pós-punk, góticos, new wave. Meus dedos calejados de tanto metralhar a máquina de datilografar, e logo após o computador, também já deslizaram pelas cordas de uma guitarra. Tocava punk-rock, os Sex Pistols, os Ramones... Minha política era a principal razão pela qual eu adorava o que fazia. E por isso fui à França. Tudo começou daí. Algumas autoridades disseram para o meu pai algo assim:
– Ou seu filho vai embora ou ele acabará sendo pego pelas autoridades, e meu pai, como só tinha a mim de filho, viu que não poderia me mudar por isso me mandou para a Europa, e no fim tomei jeito, e me abracei com o Velho Mundo. Lá teve aquela onda do pós-punk, o que deu em Joy Division, que era o básico três acordes, mas que com algo de poesia. Lá o Ian Curtis deixou algo, mas eu fui além, e passei temporada na Inglaterra, e vi muita gente boa se apresentar por lá... Vi o Cure, e num estalo reconheci o que tocavam os moleques da casa ao lado: In Between Days, aquela música, me lembrava duma espanhola com quem troquei bem mais que carícias num beco de Londres. Ela sabia bem o que fazer e o fez com tal maestria que nunca a esqueci. Então eu voltei para a França com ela, e o resto, foi história, foi a merda que deu. Eu queria ter permanecido naquele beco por uma eternidade, ter vivido duas vezes a minha vida inteira para estar ali, comendo aquela espanholinha, que me abraçava e me chamava mi amor, mi amor.
Meu pai apenas me deu um revólver, e me disse que andasse com ele para onde quer que eu fosse. Na época eu não entendi bem.
Mas a faculdade, quem pagava era meu pai, e aí, tive que voltar. Do pós-punk pude levar apenas o anarquismo, e dentro do curso de Filosofia existia uma rixa entre visões políticas, principalmente no que se dizia ao Existencialismo, e o racha ocorreu de forma que dum lado ficarão os comunistas seguidores de Sartre, que ainda dava suspiros à época – mesmo depois de morto no começo dos anos oitenta – e os defensores do Anarquismo Metafísico, de Camus, morto a mais de vinte anos. Sabia que ambos escreveram além de tudo, ensaios e obras de ficção. Sartre agradou-me, mas quando bati os olhos em Camus, vi que era aquilo que queria. Anarquia a liberdade individual, e comecei a ler um dia O Estrangeiro, sua obra mais famosa, onde o entrelaçar de absurdo estava no fato de um indivíduo poder ser livre – o que fazia disto uma crueldade com a alma do indivíduo.
Não gostava do rumo de meus pensamentos. Dois comprimidos, um gole d’água. Sono profundo. Eu não acreditava no que acabava de fazer. Eram duas da tarde, a música do Cure prosseguia, entremeando com sucessos de outras bandas, como o Gang of Four com “At Home He’s a Tourist”, Echo and the Bunnymen com “Killing Moon”, Killing Joke com “Eighties” (que o Nirvana copiou desavergonhadamente em “Come as You Are”), Bauhaus, entre outras coisas... Sob aquela atmosfera de pesadelo negro, adormeci.

***

– Tu achas mesmo que já consegue tocar esta porra?
– Só se sabe tentando, e sob estas vozes, a partir daí, foi que acordei assombrado com a letra daquela música. O moleque entremeava a guitarra com sujeira e raiva, como nunca o Cure poderia ter tocado. Quem escuta “Boys Don’t Cry” jamais iria se acostumar com a assombrosa melancolia dos seus primeiros álbuns que contém canções como, por exemplo, “A Forest”, e esta que dedilha lamentosamente o guitarrista, “Killing an Arab”. A música não prossegue adiante, e, o que é pior, eles recomeçam como se não soubessem como ir adiante. Desperto dum susto repentino e vou até a sala, onde ponho o ouvido à parede e escuto eles começarem duas, três, quatro, um número infindável de vezes, que atormentam a minha cabeça.
– Porra, larga mão dessa merda, tu não vai conseguir...
– Claro que vou.
E recomeçava. E recomeçava mais uma vez.
Olhei as horas: sete da noite. É geralmente nesta hora que a banda para de ensaiar e partem cada um para suas casas. E é o que acontece. Minha esposa vem da cozinha com uma xícara de café, que sorvo com sofreguidão, e ela percebe.
– Tá tudo bem, meu amor?
– Tá, tá tudo bem sim...
Mas a música persistiu na minha cabeça. E, como não bastasse a culpa diária, ela inflamava e criava pus, enquanto eu tentava retirar da cabeça a canção, que parecia completar a letra, sozinha, automaticamente.
A banda enfim vai embora. E jogo dois comprimidos na boca. Minha esposa percebe. Nenhum copo d’água. Seco, engulo, adormeço, como uma pedra.
Acordo às duas e quinze da madrugada e escuto cortar o silêncio o violão do rapaz, que se contorce para acertar as notas de “Killing an Arab”. E, não vai adiante, como era de se esperar – como para acabar com o meu sossego. Minha esposa desperta e olha para mim, em estado de pânico, sugando alguma coisa, talvez catarro ou lágrima, e ela então se põe sobre mim, e me abraça enquanto o violão começa e não termina os acordes iniciais da música.
Me envolve num abraço quente, beija meu pescoço, eu fecho os olhos, ela apalpa meu corpo, eu o dela, e a música segue um ritmo cadenciado e lento. A liberdade é este estado de demência? Ou seria a falta desta liberdade que me causasse esta demência? Minha cabeça tentava raciocinar, enquanto minha esposa descobria seu colo nu, e em seguido seus peitos, rijos, a balançar, enquanto ela estava sobre mim e a música seguia a letra ritmada à voz do garoto que gaguejava qualquer palavra enquanto me engasgava com a minha saliva, de nervosismo, e misto dum prazer cego. A voz do garoto assume postura, ganha o seu quarto, invade a minha casa, minha cabeça, enquanto repete, triunfante:

“I’m alive
I’m dead
I’m the stranger
Killing an arab”

Minha esposa vira-se num susto repentino, e eu gozo dentro dela mesmo assim. E ela pergunta que há comigo, e eu num grito esmurro a parede:
– Para de cantar a merda dessa música, seu filho da puta!
Sinto o dedo do garoto abafar as cordas do violão, e de repente minha esposa olha para mim sombria. Eu a observo, deitado e nu, enquanto ela se põe de pé e veste sua camisola e dorme virada para o outro lado. Fico estupefato, achando que talvez ela nunca vá entender o que aconteceu ali. Ela não sabe que matei um árabe, como Mersault um dia o fez nas páginas de um livro. Sentindo-se tão estrangeiro quanto ele, fui à uma livraria, onde um turco quis me cobrar os olhos da cara por um livro usado. Virei-lhe as costas, enquanto ele praguejou qualquer coisa, baixo. Não lembro bem o que pensei, não lembro bem o que aconteceu em minha cabeça, sei que peguei o revólver que meu pai havia me dado, e soube naquele instante que fazia algo que ia de encontro à lei, ou algo que se valha. O turco deu um pulo para trás e a arma disparou dois tiros no meio de seu peito. Ele voou para cima de uma pequena prateleira e caiu ali. Não corri, não hesitei em demonstrar qualquer reação.
Meu pai veio voando também. Mas do Brasil para me tirar da prisão. Meu passaporte fora tomado, e me tornei persona non grata em terras francesas.
No caminho da viagem de volta, meu pai cansou de perguntar:
– Por que, meu filho?, por que fizeste isto? A troco de quê?
Eu nunca soube responder ao certo.

*

– E aí, conseguiu aprender “Killing an Arab”, sujeito teimoso?
– Não, não... quando a coisa não tem de ser, é melhor deixar quieto... Mas eu tenho uma coisa melhor aqui que aprendi...
– O que é?
– Saca só, e começou a tocar os tons graves daquela canção obscura, que, ainda bem, não tinha nada a ver comigo. Era apenas mais uma canção de pós-punk, cheia de uma batida ecoada, e aquilo me agradava, para além dos delineadores e das maquiagens em branco. Acendo um cigarro e tento apreciar o sol, o céu, quem sabe agora não nos faltasse uma praia...

eap

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