domingo, 6 de fevereiro de 2011

O matador

[Um bar movimentado de luzes baças. Um homem sentado, de terno e gravata e outro de camisa de botão, que usa um bigode. O primeiro bebe uísque repetidas vezes desde que sentou, o outro apenas fuma um cigarro enquanto bebe, moderadamente há exatos dois minutos.]




– Mais uma dose, por favor. E mais um pouco. Ponha uma dose pro cavalheiro ao meu lado, sim? Aceita? Por favor, eu insisto. O que você faz da sua vida?, e não, não... Não pense que isto significa que eu esteja interessado em sua vida. Na verdade, pouco me importa o que você faz da vida. Não importa, na verdade mesmo, o que todos nós fazemos da vida. Primeiro, me diga, do que adianta fazermos o que fazemos?, nossos trabalhos, normais, são uns estupros, umas prostituições, e no fim, a prostituição ainda é mais agradável. Se eu fosse um puto eu iria adorar foder coroas carentes e veados, iria dar o furico também porque se eu entro na chuva é pra me molhar. Se eu não acho isso uma atrocidade?, não... Olha, os gregos faziam isso há não sei quantos mil anos e ninguém naquela época apontava para a cara deles e diziam, Olha, a bichona. Não... Até porque se aproveitar de escravinhos era uma coisa para poucos. Você já assistiu os Contos de Canterburry, do Pasolini?, não?, pois sim, não importam. Eu nunca dei a bunda, não tenho nada contra quem deu, mas eu daria sem problemas se minha última opção fosse esta. Ah, sim, você ainda não disse o que faz. Ó, você trabalha para alguém importante?, quem?, é algum político? Ah, não pode falar... Tudo bem. Ah, o que eu faço?, eu mato pessoas. É, pode rir, mas não é piada não. E eu gosto do meu trabalho. Faria isto de graça, sabia?, aliás, faço. Como assim?, não sei. Do mesmo jeito que alguém descobre um dom especial para, plantar uma árvore, fazer uma casa e cuidar de crianças eu descobri que só sabia matar.




[bebe uma dose de uísque, solta um "arh" e degusta a bebida ainda na língua]



Você já viu como uma pessoa corre antes de levar um tiro nas costas?, aliás, é mais engraçado ainda quando uma pessoa cai correndo depois que leva um tiro nas costas. Meio que se estribucha no chão, levanta as pernas e deixa-se cair de boca. Depois de morto, sobra até arranhão na cara. Se nunca viu, experimente um dia. Todas as pessoas desse mundo deveriam ter direito ao menos uma vez na vida a se dar ao luxo de ver tal cena. Ora, nada mais nos faz rir nesta vida, e isto é uma das poucas e boas gargalhadas que dou em minha vida. Gosto de sair à noite no meu carro, subir a ladeira, encostar o carro por trás de algum matagal e espreitar por uma viv'alma que por acaso passe por estas ruas estranhas. A sensação de ser aquilo que se teme é um privilégio, é um poder quase que de Deus, eu decido se você vive ou morre. Deixar viver às vezes é engraçado, pois algumas súplicas valem a pena a risada. Todas as noites quando ponho a cabeça no travesseiro, fico pensando no que vou fazer no dia seguinte. Se vou fazer no dia seguinte. Lembro sim de um pedido muito engraçado que falava em meu santíssimo senhor Jesus, valei-me, por favor, pelo amor de Deus, não me mate, perdão, eu não sei o que fiz, mas perdão. Ora, você já percebeu que toda vez que alguém está prestes a morrer apela à religião?, é incrível como ninguém chama o diabo, não chamam o presidente, não chamam a mãe, não chamam o pai, é sempre Deus, é sempre ele. Acho que ele tem mais o que fazer, sabe?, estourar um trovão aqui ou acolá, fazer subir as águas de um rio e inundar algumas cidades, falar com os deuses do Monte Olimpo e discutir a extinção do paganismo, essas coisas.



[bebe de uma golada e sem pedir enche o copo o garçon]




Eu acredito nele, sabe? Eu acredito que seja um agente do senhor.


[degusta mais um pouco do uísque e mastiga um caroço de amendoim]


Andando de carro é sempre divertido, mas a adrenalina me sobe a cabeça sempre que vou a pé pelas ruas da cidade. Outras pessoas teriam medo de caminhar por aí de madrugada, por causa do perigo, mas, ei, espere aí. Eu sou o perigo, e não temo. Vago cantarolando as ruelas do centro sujo, que mais parecem a minha casa. Gosto da sensação de poder que este pequeno prazer me dá. Ora, eu quase tenho certeza que já disse isso. Mas quem diria que sou o que digo senão minha fama. Resta acreditar. Pagaria pra ver?


Mais um pouco aqui, por favor, senhor.

Bem, só tenho algo a dizer, e não repito. Não adianta me seguir, me fazer ter o que temer, pois eu sou um aborto do mundo. Não tenho família, não tenho amores, não tenho amigos vivos (apenas inanimados, metálicos, projéteis, discos, essas coisas). Se você decidir passar pela minha porta e apontar uma arma, uma faca, uma caneta para mim, eu não vou pensar duas vezes antes de me dirigir em sua direção e simplesmente me deixar cair por cima de sua arma. Ou não: posso fazer melhor e atirar em minha própria cabeça, o que não seria grande coisa. Mas - isso eu vi num livro -, eu só atiro duas vezes: ou para matar ou para morrer. Isto bem que poderia ser uma grande filosofia de vida. Aqui, tin tin, saúde, um brinde aos niilistas. Mas eu nem sempre fui assim. Ou não, eu devo estar confundindo as coisas. Eu sempre fui assim, mas há algum tempo eu quis realmente mudar, sabe. Eu temia morrer, e só o que poderia fazer um homem como eu temer a morte, e faz qualquer homem rever todas as suas filosofias, é uma mulher.



[acende um cigarro e oferece a chama do isqueiro ao homem que prontamente retira o seu cigarro e acende também]



Uma mulher daquelas. Daquelas que deixam o homem, com todo respeito, de pau duro, com a macaca armada, nêgo. Ela cobrava caro às vezes, mas para mim, ela abria exceções. Ela me deu de graça muitas vezes. Era um amor de pessoa. Foi por essas épocas que eu comecei a negar alguns trabalhos e de sair à noite. Mas, a mulher é um bicho arredio, sabe?, mulher gosta de ser tratada como um bicho - quer dizer, todos nós adoramos ser tratados como bichos, vermes, as mulheres só usam isto como fetiche sexual -, ela tinha raiva dos outros porque, viam ela, toda gostosa naquele salto agulha, e tratavam-na como uma rainha. Porra, ela era uma mulher, não um enfeite de sala. Você entendeu esse paradoxo, não? Ainda bem, não gosto de explicar paradoxos, metáforas, ironias, essas coisas - logo vê-se que é um homem inteligente.



[bafora o cigarro]


Pois é. Aluguei um apartamento na beira-mar, visão maravilhosa, brisa correndo, essas coisas. Ela deitava na rede da varanda comigo, e ali mesmo nós fazíamos amor, para toda a avenida ver. Nós nos amávamos loucamente. Não é para me gabar, senhor, mas nós fazíamos loucuras na cama. Se nos reuníssemos num picadeiro, a plateia iria jogar dinheiro e bater palmas de pé para nós, sabe?, era uma loucura. Escuta, não vou dizer que me arrependo de ter feito o que fiz, porque eu sempre trabalho com isto, e você sabe bem que nos acostumamos com isso. O que ela fez?, ela simplesmente não quis morar comigo, cara. Ela era casada, ela era casada, fazia programa, dava pra todo mundo e quando eu quis lhe dar uma nova e ela me disse, Não, eu sou casada, e muito bem casada. Quando eu lhes dei um argumento, lhes disse que tinha feito tudo aquilo, comprado com todas as minhas economias um apartamento, só por ela, ela me olhou nos olhos - minha voz até embarga quando lembro -, e disse assim, Tais se fazendo de besta porque quer, eu nunca prometi que ia morar com você, nunca disse que lhe amava, você é um louco. Louco aí é demais, sabe?, Fui no criado mudo ainda em cima dela e atirei na cara dela. Nunca mais voltei no apartamento... O corpo dela foi descoberto uma semana atrás... Já estava inchado e fedorento. Na foto do jornal, jurei ter visto uma mosca no olho dela. Disseram que tinha verme na língua dela - cospe no chão, depois de pigarrear -, só de imaginar que beijei essa língua dá nojo. Antes de morrer, ela disse que o marido iria me matar se soubesse de tudo, que era da polícia e era metido com gente importante. Tais vendo que eu não acredito nisso?, antes, não tinha ninguém, depois tinha marido e só fazia isso pelos filhos, depois o homem é importante. Ah vá, viu?, por isso que hoje eu não tenho mais emprego. Mato por esporte. Sabe, como é que dizem mesmo?, para todo ócio há um lazer que se compense. Perdi meus clientes... Não sei, não sei... A vida é realmente ingrata, não?



[bafora, tosse em seguida]


Cigarro maldito. Não morri até hoje por bala, e o cigarro me matando aos poucos. Vamos ao banheiro?



[levantam-se e seguem ao mictório. Estão emparelhados, lado à lado, um, urinando e olhando para o teto, o outro olhando para os lados, como procurando alguma coisa. O banheiro vazio.]



- Nós temos muito em comum, companheiro. Eu também fui traído, sabe?, e não foi pouco. Tá vendo esse caderno?, era dela. Eu devia ter matado a puta. Mas fizeram isso por mim. Daí tou procurando cliente por cliente por ordem alfabética.



- Já está em que letra?



- Tê.



- Nossa, meu nome é Teod...



[um barulho surdo envolve o banheiro. O homem cai no chão segurando o pênis flácido e o homem olha para a caderneta pensativo.]



- Teodoro. Hm. Eu também mato pessoas. Agora vejamos. Valdir, Rua tal, número tal...



E,a,p'

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