quinta-feira, 21 de abril de 2011

Um Desastre Amoroso Exemplar (ou ferida aberta)






Esta história aconteceu em Fortaleza, nos idos de 1989, quando as coisas nem de longe se assemelhavam com hoje - não tinha internet, só para começar. Passando-se no bairro do Vila União, e narra os desenlaces de uma história de amor, tão boba e ridícula como qualquer outra sem nenhum planejamento que se quisesse deixar conduzir nos dias que passaram. Enfim, o amor é um mistério, diria maior, que a vida. Nunca se sabe o que o desencadeia e no final das contas, o que resta, é só lembrança e raiva.









Tonho pulou o muro, mirou na calçada Lúcia; vislumbrou e caiu do lado oposto do muro. Era a casa de sua irmã, mas ia saber Lúcia disto? A empregada ouvira mal sobre ele, apenas que vivia por lá e raramente ficava. Fora isto, só boatos, uns tantos que Tereza, irmã dele e sua patroa fazia questão de esconder. Mas ouvira em certa ocasião ela reclamar que o irmão não podia deixar cigarrinhos de maconha amassados nos cantos da cama onde dormia, o último quarto, junto com o filho mais novo, Ricardo, que mijava na cama ainda e chorava pela mãe quando acontecia. Sabia que Tonho (Antônio Júnior de nome, mas odiava ser chamado de Toiínho, ou de Júnior; seu tamanho não era de nenhum Tonhão, também, mas enfim... saiamos deste parêntese que se alonga até demais) não era flor que se cheirasse, mais para pedra e espinho que para flor, na verdade. Histórias à parte, Tonho era bonitão, de família distinta, mesmo ele sendo um torto, como dizia Tereza. Constataria isto depois, bem depois.






Tonho caiu do outro lado, ralou o joelho e praguejou qualquer coisa. Correu e fora ao banheiro pôr Merthiolate na ferida, que ardeu um absurdo, o líquido vermelho, enquanto soprava e dizia infinitas vezes até se sumir nos prantos da dor, porra, porra, porra, porr... Pensou que deveria fazer outra coisa da vida e sair dali, quando viu as manchas do dito remédio no chão, lembrando que sua irmã odiava sujo no chão. Aquela casa já fora toda sua, mas e aí? Hoje não podia exigir muita coisa: pai ruim, depois que a mãe morreu - que Deus a tenha, Dona Maria - deserdou o filho, que fugira para São Paulo, de moto, jurado de morte pelo cunhado, que queria fazê-lo por ter Tonho posto todos os dentes de sua irmã a perder com um murro que dera em sua boca. Tonho lembrava da cena, ria, mais de desespero que de satisfação. Na verdade não podia adivinhar que as coisas acabariam assim. Um inferno. A mulher, uma ninfomaníaca, abrira as pernas para ele, queria todos os dias tê-lo, e por isso, jovem demais se deixou seduzir, como disse Zé Carlos, por uma surra de buceta bem dada. O Vila União inteiro sentia a sua falta! Como poderia ele deixar de frequentar as festas que ocorriam ali próximo, na Lagoa do Opaia, nas proximidades do minúsculo Aeroporto Internacional Pinto Martins, onde seu pai mantinha a banca de revistas, sendo esta a razão da boa quantia que usufruíra há muitos anos; mais pela mãe, sempre mimando-o, que pelo seu pai, bruto homenzarrão. Adeus às farras na Lagoa: nada de cigarros de maconha, que Patrícia, recém-nascida não podia. Nada de cerveja, cachaça, essas merdas todas... Qual! Assim eu não vivo! E desobedecendo às ordens de sua esposa saia todas as noites e tinha que aturar as queixas chorosas de sua presença todas as noites ao seu lado no leito frio. Ao diabo! Fora por isso que ela levou uma bordoada de tamanha potência. Não era mulher ruim: chorava por ele, mas era chata em exigi-lo para si. Pensou em tudo isto enquanto sentia o ardor da ferida, lembrando também do dia em que cortara-se na oficina de motos - que deveria já ver a quantas andava, pois Zé Carlos, bem, esse, nunca se sabe...






Lucia corria ainda à casa de Teca, a irmã de Tereza, já disse, sua patroa. Um vagabundo pulou o muro de sua casa para a casa de Tereza, gritava atordoada a menina, engolindo o asco de observar a cara de Teca, que ela bem sabia que lhe odiava também. Esclareceu então, a coroca, que era Tonho, que voltara de São Paulo fazia pouco. Só então, Lúcia, menina ingênua vinda do interior, entendera que era o "principezinho" da família. Isso, aquele por quem tiravam os sapatos ao chegar da escola para não despertar do sono do meio-dia... Esse mesmo. Sentiu-se aliviada e feliz, mas além disto, uma onda de felicidade lhe sacudia o estômago, como que borboletas subindo e descendo, indo quase na garganta a fazer cócegas e voltando, quase fazendo-a rir na cara de Teca, sua rivalíssima. Voltou aliviada para a casa de Tereza, onde viu no banheiro, que estava de portas abertas, Tonho, soprando ainda a ferida. Lúcia cuidou da ferida, pois tinha experiência: irmã do meio de dez irmãos, dos mais velhos aprendeu a cuidar dos mais novos vendo-os cuidar de si. Com treze anos apenas já cozinhava, passava, lavava como uma mulher feita, mesmo sendo tão pequenina, a moçoila, que evitava olhar no olho de Tonho, que observava a beleza dela, posta em cachos grande e pretos - magrinha, sim, mas linda - o rosto infantil, ainda, já resguardava em si algo de mulher.






Lúcia já conhecera outros homens, poucos, mas já beijara bocas de priminhos. No interior, conhecera um moço que lhe encantou, mas ao beijá-lo sentiu nojo. Nem lembrava mais disto... Por que pensava nisto? Só dizia com voz baixa que tinha se assustado com ele sobre o muro, de chinelos e bermuda jeans rasgadas; sem camisa, peludo, parecia um macaco, e riram. Tonho olhava encantado para Lúcia - tinha o mesmo nome, e saberia depois que o sobrenome também, de sua ex-esposa - e sem entender como, criou coragem, e chamou-a para sair naquela mesma noite.






Lúcia, pobre dela, não adivinharia que depois aquele muro seria maldito; derrubá-lo-ia todos os dias se fosse preciso para desfazer o mal entendido de erros que seria aquele romance que se principiava já de cara pro erro. Para começar, a família de Tonho nunca iria aceitá-la como membro da família que era de uma burguesia decadente, preconceituosa - e hipócrita, pois tentava pôr para debaixo do tapete a sujeira, o tumor, que era Tonho; uma cruz, como diziam. Todos tinham estudos feitos, completos, "terminados", quanto que Tonho passara às quedas por um supletivo, naquela época em moda no colégio J. Oliveira - lá ele fez; e ela, uma pobre coitada, fragilizada pelas ilusões perdidas de um bom partido, de um bom futuro, vá lá, que um dia fora impedida por sua mãe de seguir com a família com a qual trabalhava antes para os "istaites", eles, que tanto gostavam dela, que tanto lhe tratavam bem, diferente dessa pobre besta da Tereza, ela dizia... Diria para si, mentalmente, quando as três crianças pequenas, que viriam logo após de seu filho mais velho, começassem a lhe irritar que Deus poderia ter feito da vida dela bem mais que mãe. Ora, ela não adivinharia nada disso. Pois se soubessemos o que nos aguarda, não nos arriscariamos, mas por que diabos, Deus, não nos manda um sinal, tu que és forte, para que aquele homem, que lhe daria tapas e mais tapas na cara - lhe derrubaria da moto em movimento enquanto grávida - se sumisse das vistas dela daquele muro infeliz que dividia a casa de duas irmãs?






Depois de sofrer muito, levantaria a custo de muito suor a dignidade perdida com a família do seu então marido - mancebo, na verdade, já que a ex-Lúcia não separou-se nos conformes de Tonho, fazendo-os casados apenas nas aparências - eis que depois de muitos anos, três filhos e um que carregava esperançosa de vir sua primeira filha, Lúcia descobriria que nunca deixara Tonho de lhe trair, ainda mais depois que passou a trabalhar longe, consumindo estradas e mais estradas mundo afora na boleia do caminhão - sim, pois Tonho deixara de ser mecânico há muito; fora entregador de pizzas, para só então depois lhe consumisse a vontade de ser caminhoneiro, mover aqueles monstros que lhe faziam sonhar na infância, ele que tanto amava carros - dirigira pela primeira vez com 13 e com 16 já tinha o seu Chevette, zero quilômetro, Que saudades da mamãe pensava às vezes... Esse desejo pelos bólidos, um automóvel nunca lhe abandonou; criara dívidas e se afundara nelas em nome do desejo, do luxo (uma vontade de mostrar para a família que crescera aparecera e era enfim, gente)




Trocada seria, abandonada seria, ao léu, ao vento, ao nada, ao Deus dará, sem assistência, por uma mulher, por um belo par de pernas - que seria a única coisa que esta outra teria. Que faria ela depois? Que faria? Se soubesse, ah, se soubesse! Seu filho mais velho não lhe deixa esquecer nunca - aliás, os quatro: todos serão a cara de Tonho, o sangue de sua família. Rezará dias e dias pela luz, pela vontade, mas, mas...















































Ela
aceitou.















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