ao tempo
que tudo leva
mesmo que leve
do jeito que levo
As
pessoas no bar o olhavam, e não era para menos. No calor da cidade, mesmo que
com essas chuvas de abril, usava um sobretudo, à cidade nem isso era dado de se
ver ou usar, mas também ninguém falou. E falaria? Eu mesmo não posso adivinhar o
que faria se o visse por aí, mas digo uma coisa e uma coisa apenas: esse homem
não é normal. Dizem que não é daqui, deve ser de outras paragens onde as
pessoas nascem daquele jeito, a pele escura, o rosto marcado pelo tempo como as folhas amassadas costumam costurar seus vincos, tumores, segundo eu supunha, que
pareciam raízes, mas não eram. Disse-me que vinha de muito longe, que tinha
cento e tantos anos, nasceu no século retrasado, e é de se espantar que seja tão
lúcido, tão leve no dizer, mas que queria sol e nessa cidade, você sabe como eu
sei, é uma bênção e uma maldição – e deus mandou o sol como castigo
por termos usado da terra mais que o que precisamos, aliás, ele fala de terra,
sol, ar e água como um astrólogo, bem dizer era isso que era, que na sua face
era escrita a terra e o sol, para sempre assim fosse louvado seu batismo em água
e tudo o mais. Dava angústia ver seus tumores. Daí que ele desatou a falar.
Quando
ainda era difícil ver tornozelo de mulher, a sua mãe só com os olhos era a
mulher mais encantadora que a cidade onde nasceu já tinha visto. Era filho de
uma linhagem há muito extinta, muito pela sua maldição. Sua família, dizia, era
do sudeste, ou coisa assim, onde há mais frio que quente e as pessoas costumam
se esquentar umas nas outras. Tinha a festa da primavera na serra, celebrava a
colheita farta, e nessa história, seu avô era homem de respeito, tinha dinheiro
e muito prestígio, tudo o mais que até o rei já se fizera convencido de mandar
carta e convidá-lo a ter com ele, sabe lá o que. O rei, sim. Dom Pedro, deus o
tenha, daí que em dado momento sua mãe era moça, casar era honra de passar o
nome pra frente, descender o sangue azul. Desde que debutou, a moça era alvo de
olhares de toda a serra – morava na serra, eu disse? – e com mais ou menos 16
anos o pai já havia especulado fazer acontecer o avô de chamado pela casa. Em
dado momento, apareceram os pretendentes, das mais diversas regiões, onde o
julgo da festa da colheita se fizesse visto que soubesse: a cobiçada filha
estava pronta.
Na
cidade corria que ela era uma louca ou amaldiçoada, pois que o marido de uma dona que por lá
morava só de vê-la enlouqueceu e queria lutar contra o desejo de abandonar tudo
pela moça, que tinha aquele olhar de louca. O marido que tinha uma quitanda
abandonou o balcão e pôs-se a lutar contra sua vontade, passando dias em
reclusão sozinho em seu quarto, até o dia em que foi encontrado enforcado
deixando uma carta sobre o criado-mudo. Até aí, coincidência, o homem era
louco, mas em seguida, um rapaz, que era filho de um padeiro distinto da
cidade, conseguiu invadir a propriedade do senhor de terras, seu avô, e
espiou-a de relance pela fresta da janela – a história que correu pela cidade
foi de que, não tendo mais sido visto, ele saiu uivando pela noite e virara um
ciumento animal que rondava a fazenda, até que um dia foi morto um monstro-cão, que
era meio bicho peludo, meio homem, a cabeça uma sopa de miolos e sangue que se
derramou pela mata e onde fecundou com a terra o seu sangue nasceram girassóis azuis,
que não seguiam o sol, mas a lua, murchando-se ao contato com o sol e refazendo-se
com o cair da aurora num espetáculo nunca visto. Lenda urbana, conversa de
folclore, tudo bem, até surgir esse homem, cabalístico terceiro, que fora
aprovado e certificado como partido certo para aquela sua mãe que não queria
lhe olhar na cara – rejeitou-lhe, embora não fosse dado a ela nenhum poder de
decisão sobre quem pudesse levar-lhe a mão ao altar. O homem, que vinha de
longe, hospedou-se na casa, para que dia seguinte seguisse viagem para casa,
dar as notícias e tudo, não? pois que o homem ao dormir, três e quinze da
madrugada só se via o fogaréu saindo de sua janela, o corpo em combustão
espontânea, ardeu até o osso, deixando nas molas de aço do colchão pedaços de
gordura grudados. O cheiro da carne esturricada ficou impregnado no quarto, enlouqueceram a
preta que cuidava da casa que foi encontrada enforcada com o lençol no seu
quarto de dormir.
Até
que dadas as desgraças, aos seus 17 anos, na festa da primavera, veio o homem,
à cavalo, todo preto, alto e magro, pálido feito um cadáver, seu pai, a moça
não fez concessão ao forasteiro, que a olhou e também a quis, este não
enlouqueceu de morrer ou de matar, nem de virar animal, casou-se, filho
distinto de outra linhagem de homens distintos, sangues azuis, também seu avô
paterno já sendo um homem de outras paragens, onde viajava Europa adentro,
trazia consigo a ideia da república (contou-me mais tarde que o cavalo no qual
Marechal Deodoro galopara rumo à proclamação da república era na verdade de seu
avô) e foi-se à jato o casamento.
Daí
que em primeiros dias de casamento, o pai da noiva dera mobília inteira, não
aceitou dote, nem coisa alguma, já que firmara um contrato de cavalheiros com o
pai do noivo, que por sua vez oferecera uma velha e grande fazenda feita pelo
tataravô de seu avô.
Os
problemas do casamento começaram com pouco mais de sete anos, depois de
tentarem, sem sucesso de todas as formas possíveis, ter filhos – para desespero
dos sexagenários avós, que viam um problema em descontinuar as suas linhagens,
sendo assim, puseram em voga a possibilidade de desfazer o casamento para que
assim a riqueza de ambos pudesse ser levada adiante por um homem de negócios de
punho firme que veria na aurora do novo país a fortuna que levantaria os seus
sobrenomes. O moço então, cogita a possibilidade de desmanchar o casamento, diante
da infertilidade da esposa, que serventia teria para o futuro de levar à frente
a fortuna acumulada de ambas as famílias e diz para sua esposa, numa noite
chuvosa o que pensava sobre o caso. Descaso. Desesperada, a mãe controla a
angústia, espera a noite, remói consigo o ódio de borbulhar e babar no canto da
boca, daí corta então o marido enquanto ele dormia. Bem onde você acha que é,
bem onde dói, com raiz e tudo. Tão profunda e grandiosa foi a dor que sentiu
que não conseguiu gritar, se mexer ou qualquer coisa, sequer chorar, chorou,
apenas espasmou por um instante e deixou-se amolecer o corpo inteiro, vivo mas
não tanto. A mãe, na chuva, enterrou o órgão com sangue nas mãos no quintal,
sem saber bem o que fazia, movida apenas pelo ódio, o nojo e o desespero que
levava consigo. Parou então por um instante para ver que mulher que era, não
conseguia saber porque o fizera, logo depois e deus soprou em seu ouvido que
era o certo a se fazer, porque ele, o onipotente queria assim e que assim seria
para todo o sempre amém – deus era um homem com as mãos amarradas em correntes
que saiam da terra, havia vendas ensopadas de sangue em seus olhos.
Sei
que a história parece irreal, mitologia grega, folclore de doido, alucinações
das mais pesadas, que nem o mais febril dos doentes poderia sequer esboçar dois
ou três palavras, inclusive não peço para que acredite em mim meu bom amigo,
sou o portador das ouças, a voz que me sussurrou isso bebeu destes copos
apenas, nunca fui homem de mentir para o vazio, nem comigo amargo dor nenhuma
de contar isso sem propósito, apenas repito tal e qual a história como o homem
me contou – sei que você já está cansado, inclusive, mas vou tão cansado de
guardar comigo este segredo que dou-te uma dose por conta da casa para que
continue a escutar o desfecho do que ouvi, preste atenção.
Durante
o período que se seguiu e acalmaram-se os nervos diante da situação, seu pai passou
o resto dos seus dias inválido numa cadeira, sua mãe continuava bela e jovem,
os olhos de louca, descobriram depois, era prova de sua inocência infantil,
continuava feliz, continuava a viver e podar uma muda que cresceu no lugar onde
enterrou o membro amputado, o pai observava com olhos duros sem nada poder
fazer a não ser cagar o dia inteiro e um enfermeiro a limpá-lo até o fim de
seus dias, que por sinal, duraram muito, em cima da cadeira de rodas, o homem
viu seu pai morrer, seus frutos podres, seus animais e seu próprio corpo, ao
seu lado, a mãe, sua esposa, que apesar de tudo lhe tinha amor, cuidava-lhe aos
beijos.
Uma
árvore cresceu do lugar onde todos os dias a mãe punha-se a cuidar e, meu amigo,
o absurdo vem de que essa árvore passou a dar frutos. Os frutos eram pequenos
fetos que cresciam na primavera. Alguns julgavam-se frutos podres, caíam e
espatifavam-se no chão, seus corpos com frágeis membros que não eram mais
resistentes que galhos secos quebravam-se por inteiro, sobrando apenas a
recolha de tudo o que era resto e as lágrimas da mãe que não conseguia salvar a
todos. O pai, que estava lá sem estar, não conseguia sequer mover os olhos ou
levantar um dedo, pela primeira vez em 5 anos, chorou antes que pudesse
respirar pela última vez e virar uma pilha de carne sobre ossos atrofiados pelo
tempo cobertos por um lençol prontos para serem despejados debaixo da terra. O
desespero da mãe diante da situação era tamanho que por mais de uma vez se
matou. Tentou atirar em si mesma, enforcar-se e até mesmo envenenar-se,
entretanto, deus, onipotente, desceu dos céus, dessa vez na figura de uma ave
negra e lhe disse que não seria possível morrer até que ele desse permissão
para tal.
Alguns
fetos conseguiam ser salvos e colhidos, a mãe punha-se a cuidar de suas frágeis
existências. Pouco a pouco os filhos eram cuidados, engatinhavam, quebravam uma
perna, morriam, andavam, tropeçavam, caíam, morriam, iam falar, as cordas
vocais, frágeis e acostumadas com a semiparalisia de músculos rachavam,
esfarelavam-se, pássaros bicavam-lhe os olhos, cegavam, morriam, até mesmo
cupins passaram a apossar-se dos corpos de alguns bebês, e os comiam de dentro
para fora, deixando-lhes somente a casca para frágeis, desfazerem-se ao
primeiro vento e morrer. Se uma fagulha de fogo fosse chamuscada em sua
companhia corria-se o risco de queimarem-se fatalmente, afora as deformações
físicas que alguns tinham, de coluna envergar-se, em seu crescimento, e, depois
de certa altura, quebrarem-se, morrer. Parecia fatal ser assim, ele me disse,
mas com o tempo, os cuidados foram sendo redobrados, e, até que um dia, o mesmo
deus resolveu descer do céu em forma de raio e queimou a árvore inteira, para que
só assim a sina da mãe tivesse fim e também a de seu pai – o que se seguiu
depois do raio foi um choro de mais de cem fetos que rasgaram-se pela madrugada
enquanto queimavam até virar pó e fumaça. Passaram-se então alguns anos e
chegaram à idade adulta apenas alguns desses homens, que por terem seus corpos
já tão jovens cheios de rugas profundas em suas peles, era tidos como doentes,
párias, objetos de repúdio da sociedade, afinal, ele me disse, o mundo não
resumir-se-ia àquele lugar amaldiçoado pelo tempo. Entretanto enquanto seus
irmãos apenas queriam sobreviver, ele resolveu caminhar até cansarem-lhe os pés
e chegar até aqui. Viu de tudo neste mundo, lutou contra as mais diversas
pestes, viu a guerra, a bomba e até os Beatles. Um dia, ele disse, voltou até o
lugar onde era sua casa e encontrou apenas um lugar devastado por um matagal
selvagem e profundo, árvores que cresceram no lugar onde deveria ser seu lar,
adentrou uma porta e encontrou o que costumava ser seu irmão, um rosto
desfigurado em forma de árvore que cresceu de dentro do quarto, arrancou as
telhas e dava frutos doces e amarelos que alimentavam pássaros que fizeram casa
onde deveria ser sua mão. Profundamente enterrado, virando alimento da terra, o
irmão abriu um olho e disse que viveu, ao que ele disse que aquilo não era
vida, então chorou porque o irmão não reconhecia que apesar de vivo ele estava
morto. Isso faz mais de 50 anos, mais ou menos. Quando ele terminou de contar a
história perguntei-lhe como pôde ainda estar vivo, ao que me respondeu que
apenas não deixou-se fazer criar raízes em lugar nenhum, pagou a bebida e saiu,
deixando aqui esse pó de madeira que você está com o cotovelo em cima.