segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mínimas VI - O Poder da Fábula na Sociedade de Consumo Contemporânea

Batia a cabeça na parede a criança,
dez anos, na idade do dentinho, e
consequentemente, da fada do dente.
1 real de recompensa - pra ser feliz.
- Júnior, o que é isso?
- Que droga, mãe, preciso de dinheiro.

E,a,p'

domingo, 28 de agosto de 2011

Mínimas V - Ortografia

Uma dúvida rápida de português,
coisa corriqueira,
e aí pergunta ela ao namorado,
– Meu amor, ônibus tem acento?
Impaciente ele responde,
– Tem quarenta e dois!

E,a,p'

sábado, 27 de agosto de 2011

In Random - Citadino Insone


Se minha cidade fosse este vento frio e tranquilo que penetra noite adentro, talvez fossemos outras pessoas. Talvez eu tivesse maior parcela de culpa na minha consciência juvenil, pois que eu iria lamber a lama do meio-fio, tomado de uma embriaguez sem tamanho em meio a beleza que envolve esta noite condensada em um silêncio interrompido por breves rangeres de portas e de tosses catarrais de velhos doentes. A estrada seria mais curta até o desespero pleno das autoridades policiais em relação ao nível de adolescentes indecentes em suas boemias insaciáveis em meio a cidade. Se ela fosse assim durante todo o dia... Esse sol não me é agradável, não é. Não é que o câncer me assuste, que o cigarro já fará em breve o seu papel, mas na verdade, este sol maldito nos põe imundos, cansados, exaustos. O sol bem que poderia ser lua e aí quanta gente mais não estaria na rua, declamando versos de trás para frente, com gosto de saliva amarga, que é o gosto da maior parte dos ácidos gástricos enquanto borbulham em nosso estômago alimentados pelo desgosto de viver trancafiados. Eu quase tenho cócegas da chuva, e agradeço verdadeiramente por cada gota. Cantaria por cada uma delas, mesmo por seus momentos ruins, como as goteiras que vez por outra me despertam em meio a imundície do telhado vermelho cheio de teias de aranha, que teimam em me despertar madrugada adentro. E agora, sentado aqui, nesta varanda sórdida, com o fungar do cachorro escocês em meu pescoço, eu sei que a noite ainda é quase dia e que tudo que se pensa sonho em minha mente, é real. Eu procurarei depois um sentido pra isto. Na verdade, eu queria mesmo era falar de Deus, e de toda a religião. Mas este céu rosa, este vento forte, estas folhas que em mim engancham têm muito mais sentido, maior valor; pois que nada que recebe esta tamanha importância merece o valor que lhe dão. Olhem as guerras, que são todas elas por três razões interligadas: pessoas, política e religião. Cada qual com o seu pilar que sustenta esta desgraça em que vivemos. Boa noite sol, bom dia lua - eu queria ter sorte em viver até amanhã, que bocejar é quase morte. Se a minha cidade fosse boa, por ela eu seria grato, mas eu penso e logo digo: este sentimento de gratidão é tudo o que há de mais ingrato neste mundo.

E,a,p'

ps: Foto: Fco. Fontenele - O Povo

sábado, 20 de agosto de 2011

Um Morto


É ruim assim como morrer, reconhecer todos aqueles rapazes que hoje se desconhecem pingo após pingo d'água caídos na pia, por conta da morte dele -- logo dele, aquele que nunca sofria, não reclamava, não tinha vontade de falar sobre si. Era difícil responder como pairava o silêncio sobre as cabeças inertes a olhar para o centro da mesa, que era branco -- inseguro, sem graça, constrangedor, como aquele momento. Era uma larga mesa de seis lugares.

Dois amigos tomavam cerveja, dois não tomava nada, e outro ia degustando gole após gole uma xícara de café, e este ia produzindo o único barulho audível (além da gota da torneira sobre os pratos sujos, que já enchia um copo) que era a colherinha que tilintava nas bordas de porcelana branca. Cada qual tomava um lugar na mesa -- a ponta do lado da parede vazia.

Mãos sobre os queixos. O som das folhas resolve incomodar, lembrar de qualquer momento que não aquele, incompreensível, como aquele corpo de rosto amarelo dentro do caixão de madeira talhada. Ele quase sorria, e parecia ser o mesmo que meses, anos, sabe lá mais quanto tempo (parecia mesmo ter sido em outra vida), tinha chegado na porta de cada um, e com o carro, apertou cada um num mesmo espaço, com sorriso largo, o maior do mundo. Eles pensavam, e quando um deles (o da xícara) lembrou disto, disse com um sorriso, de canto de boca,

-- Ele tinha a maior gargalhada de todas.

Aquele dia tinha sido um retorno à memória falha de cada um daqueles rostos cansados, mal-barbeados e mal-humorados, sobre tudo aquilo que foram um dia, que não voltariam a ser jamais. O mundo como havia se apresentado para cada um deles não era aquela coisa estranha, distante e esquisita da juventude, que sentados aos bancos da rua que só tinha saída para a esquerda, diziam ser a coisa mais distante deles, que nunca seriam como seus pais, que a vida seria boa, que no futuro, seus filhos seriam herdeiros desta juventude que coruscava vitalidade. Se eram os Felas, seus filhos seriam os Felinhas. Já tinham tudo à ponta da língua, as histórias todas. Aquele, aquele sim, tinha a maior gargalhada de todas, não este que morreu, pois a risada dele era uma explosão, era algo que ardia, de dentro para fora.

-- Ele não aguentava a risada do Bebeto.

Lembraram que ele tentava, em vão imitar, dizendo, Era um negócio tipo assim, hm-mm-m, uhahahaharááá, e ele mesmo não se aguentava só em lembrar. Era um riso frouxo, inocente, às vezes. Mas nem sempre. Tinham na cabeça esta última data, que não era de recente, e naquele dia, unindo ponta daqui e dali o Morto conseguiu unir aqueles pedaços partidos de amizade. Mas ele bem sabia que nunca mais seriam os mesmos. Tinha a um lado, aquele que era pai, mas não perdia o ar pueril de sua personalidade, do outro lado, aquele enorme cara que abandonara tudo para fazer o que bem entendia, e era um tanto infeliz, mas sempre malandro, mais a frente, um rapaz que buscava qualquer coisa de futuro, de outro, um que achava tê-lo encontrado, e ia muito bem. Tudo estava na medida de ser belo, até o fim da noite, quando alguns se esmurraram, e a noite acabou no hospital.

-- A culpa é nossa?, pergunta um.
-- Não. Tu não ouviu a carta?

A carta era clara: a juventude era uma época boa demais para se dar de costas assim. Tudo era tão rápido, vário, e a vida adulta tinha chegado de tal forma, sorrateira, que lhe enfiou uma faca na garganta, e aquele grito incontido morreu em sua garganta, morto de vontade de sair ecoando por todos os lados, alardeando o fulgor de uma vida inconstante, um terror premeditado, era um Uivo, como disseram um dia na sua faculdade. E o uivo, não foi nada além que um engasgo seco na ponta da língua. E disto não passou.

De repente, a luz fraqueja, embacia-se, clareia e escurece, sob o gotejar do copo, que vira, esborrota de tão cheio, produzindo um estardalhaço sobre os pratos de vidro, e eles se assustam. O que não tomava nada olhou em volta, pôs a mão na cabeça, ajeitou o óculos, refez o penteado, levantou-se e ajeitou a louça. Era a sua casa. Ao voltar constatou que a cadeira do canto da parede estava fora do lugar, e uma borboleta negra emergia de lá. Olhou para os que nela estavam, sorriu, perguntou Foi algum de vocês?, ao que todos negaram, assustados. Ele sentou, serviu-se de uma xícara. O silêncio permanecia, ao que a borboleta saía porta afora, tomando o rumo do farfalhar das árvores.

Talvez morrer não seja tão ruim quanto permanecer aqui.

E,a,p'

Aos meus amigos.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Resíduo de Drummond -- Parte sobrante de poesia + Resíduo de Carta





"Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem. (...)"

Resíduo - Carlos Drummond de Andrade







xx

"Talvez de todas as partes a menor. Não sou nenhuma revolução em forma de pessoa. Se eu pudesse me definir numa pessoa, seria Drummond, se eu pudesse me definir num Estado, seria Minas. Ah, eu todo mineirinho, com sotaque forte de cearense. Toda minha discrição, minha relutância em aparecer, uma total falta de atitude que aqui não cabe dizer.

Mas de amor tenho muito falado, e isso tem me surpreendido. Tenho felicidade em ter encontrado uma mulher com a qual eu possa debruçar minha cabeça cansada. Fora a cabeça cansada, deleitar meu amor recíproco. Mas de todas as maneiras, me sinto completo com ela. Digo que ao que me parece, também ela parece gostar de mim, nada afirmo de total certeza: esta nesse mundo não existe. Mas nela tenho acreditado. Pode ser que no fim eu me arrependa, se ele houver e vai haver – depende, entretanto de que maneira será esse fim!"

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Poema Subterrâneo

Todo asfalto tem cheiro de morte certa,
posta em postes, com medo,
diferencio, calcando os pés no abismo de sonho profundo
do e no qual sou desfeito.

Ah, gravidade!,
teu efeito foi fazer
cair ao chão o pobre homem terreno.

Por terra e embaixo dela
vive um e muitos, --
vermes em olhos
dentes em pedregulhos (metamorfose),
por baixo de toda selva de concreto,
o fosso em que guardam os seus -- homens.

E,a,p'

Passeando - On The Road


"E aquele foi um momento marcante em minha vida, o mais bizarro de todos, quando não soube quem eu era. (...) Eu estava na metade da América, meio caminho andado entre o Leste da minha juventude e o Oeste do meu futuro, e é possível que tenha sido exatamente por isso que tudo se passou bem ali, naquele entardecer dourado e insólito."

Kerouac, JACK in: On The Road - Pé na Estrada. pag. 35.

domingo, 14 de agosto de 2011

Mais uma dose de café


___Ela me olhava por trás dos óculos com cara de quem estava me sacando fazia tempo - mas sacana era ela mesmo, que achava que enganava alguém, olhando assim, descaradamente.
___Eu ia tomando o café, discreto, olhando com olho de peixe - um olhar que o homem sabe fazer: ele te olha, mas não te vê. O burburinho da cafeteria parecia um trovão. Eu não sei porque eu insistia em marcar encontros nesses locais cheios de pessoas populares, felizes, divertidas. Alisei o coldre - gesto típico, que tive que disfarçar como coceira no sovaco. O paletó me irritava e eu sentia que não estava bem dentro dele, que tava com cara de pastor.
___O homem entra porta adentro com discrição e vai deslizando entre as cadeiras e pessoas, parecendo uma sombra monstruosa. Ele pensa que não vi e senta ao lado da mulher. Na verdade, ele tem certeza que não vi, porque na mente dele, ele não estava se esquivando da minha vista, e sim das pessoas, para chegar até ela - a mulher dos óculos, que cruzara as pernas assim que ele chegou. Ela tinha certeza de que eu a via - mulheres são mais inteligentes que os homens - mas não são mais inteligentes que eu com uma arma num coldre.
___Quando eles começaram a conversar, uma turminha lá atrás gritou, É isso aí, e começaram a vaiar, gritar e bater palmas. Talvez eu seja muito velho, mas essa juventude me enche a paciência com essas coisas. O ambiente ficou ensurdecedor com o barulho da jukebox, que tocava uma música desagradável. Eu tinha certeza de que minha úlcera iria estourar a qualquer momento.
___A mulher levanta e vai até o banheiro. O homem tinha oferecido para ela um pacotinho, que, se não fosse meu olho treinado, teria passado despercebido, como passou para a maioria, senão todos. Fui até a mesa. Ela iria demorar - ia fungar um talquinho no banheiro - esses yuppies merecem morrer mesmo - ele, no caso, não ela. Discretamente me sento ao lado do homem que pula de um susto. Ponho a mão na mão dele e carrego até o meu coldre. Ele sente a arma, fica da cor da minha camisa e sua frio, rapidamente, muda de cor.
___- Escuta, se ficar quieto, não vai chamar atenção e eu prometo que vai ser rápido.
___- Mas, mas...
___- Sai da mesa, vai lá pra fora e devagar.
___O homem tremia - o que era ruim. Deixou uma cédula embaixo do porta-guardanapos e saiu. Eu saí logo em seguida, pondo também uma nota debaixo da minha xícara de café.
___No lado de fora o homem procurava acender apressadamente o cigarro, mas a mão tremia. Acendi para ele, enquanto ele procurava parecer tranquilo.
___- Passa teu dinheiro e a chave desse teu Mercedes... não se esforça que é pior. Eu disse. O serviço é o seguinte: tá vendo esse carro? Você vai pegar ele, vai para o mais longe que puder. Eu não quero mais ver essa tua porra de cara. Se eu por acaso de te vir, você vai segurar o cano da minha bereta pela segunda e última vez, mas vai ser com a gengiva, porque eu vou arrancar todos os teus membros e todos os teus dentes. Agora corre.
___Dito isto, o homem entrou no Gol prata, acelerou e sumiu na curva da avenida. Entrei no café, sentei ao lado da mulher, que esperava impaciente.
___- Demorou tanto assim?
___- Eu tinha que ter certeza que ele não tava armado.
___- E ele? Cadê?
___- Deve ter ido pra casa... Não vai mais te importunar.
___- Será que ele vai até a polícia?
___- Ele não é o primeiro. Mas com o que já arrecadamos, dá para parar.
___- Você acha?
___- Acho.
___Ela recostou a cabeça em meu ombro, seu telefone tocou, mas ela não atendeu. Quem sabe outro dia. Agora quero mais uma dose de café.

E,a,p'

domingo, 7 de agosto de 2011

Crânio Eletrônico - Divulgação



Estou numa nova empreitada, que posso encarar até como fruto de um reconhecimento por isto que é a minha maior motivação em trabalhar este blog: a literatura, os livros e a cultura de um modo geral.

Digo isto de modo sucinto, pois não me alongarei mais para dizer que foi de muito bom grado que aceitei a proposta de meus amigos de infância de 13 anos, Gilciêr Silva e Raul Sérgio Oliveira para encabeçar os colunistas deste blog, que já sugere muita coisa só no nome: Crânio Eletrônico.

Estarei por lá falando sobre novidades da literatura, lançamentos, informando, e, resenhando - clássicos, emergentes (que era coisa que eu não fazia antes) e tentar fazer valer e não deixar por menos toda a confiança que em mim depositaram.

Já de cara agradeço.

E a quem já me segue aqui, que nos siga, que veja, comente, critique - por que não? Tudo que se soma é ainda benefício em prol da melhoria.

E,a,p' - férias por tempo indeterminado.

sábado, 6 de agosto de 2011

Tempo

Do filme "Morangos Silvestres", de Ingmar Bergman

"Tempo: Série ininterrupta
e eterna
de instantes"


Desde quanto tempo
o tempo é tempo?

Ecoa em mim
o grão de areia
que ele deixou.
E no fim:
é bilionésima parte
de infinitas partes
biobilionésimas.

E,a,p'

(talvez a melhor e mais bonita definição do indizível que já vi)

Fraternidade


I

Fui à contragosto deixar meu irmão à sua escola. Na verdade, à contragosto não tanto: mais porque eu não gostava mesmo de andar com ele, por tudo o quanto não somos. Qualquer vestígio de amizade é pura ilusão, pois que ele fora meu primeiro irmão caçula e de toda forma muito sofri desde seu nascimento física e moralmente. E qualquer coisinha, desde o olhar demorado à qualquer outra coisa era razão de nos estapearmos. A diferença entre nós dois era abissal: nove anos. Mas não é disso que quero falar. Pulemos como se pula corda para outro parágrafo.

Caminhamos eu, ele e mais um amigo dele que ia anedotando qualquer coisa ao pé d'ouvido.
Eles riam e eu ia escutando e rindo comigo mesmo,

- Meu, saca essa.
- Hum.
- O cara tava lá né? daí ele chegou pra dona gostosona que ele tava secando e disse assim, Ó, tenho uma proposta pra tu, aí ela disse, Sai, nem quero ouvir, daí ele disse, Escuta, vou jogar cinquenta reais no chão e tu vai ter que deixar eu fazer tudo o que eu quiser contigo enquanto tu apanha, certo?, aí ela, Certo, achando que o cara era doido, e que ia ser mole pegar uma cinquenta reais do chão. Não ia dar tempo nem dele olhar, né? Diz aí: ele num joga cinquenta reais só de moeda de cinco centavo no chão não?
- Porra, ela se fodeu, hein?

Lembrei que eu também não fui santo quando tinha a idade dele. Antes mesmo eu já sabia que interessava mesmo era o que a mulher guarda dentro da calcinha. Se tinha visto, vi porque meus primos me mostravam sites pornôs no computador, ou então mostravam revistas de "mulher pelada" para mim. Eu não olhava, pois caminhava à frente deles, mas tentava entender o que ia pela sua cabeça, que ânsia lhe movia até encontrar o que tanto se procura?

E ele só tem dez anos.

II

Um telhado avermelhado, absolutamente espaçado sob um sol impiedosamente brilhante de uma da tarde. O telhado tinha espaços entre telha e outra, o que deixava pequenas frestas de luz penetrarem no grande espaço que divisava salas de lado e de outro. Seis pilastras encobertas de azulejo branco cheias de desenhos e nomes sustentavam o local. Debaixo, mais abaixo, crianças correndo, e eu, irritado, encolhido na insignificância de minha invisibilidade, observava o correr das crianças, suas vozes finas a gritar coisas que eu não conseguia ou não queria simplesmente escutar. Observava seus movimentos.

Sobretudo meu irmão. Sua voz não era a minha, era outra, e no entanto viemos do mesmo ventre, e tudo em dez anos meus e dele eram tão diferentes! Ele parecia mais familiar com o ambiente, ao que eu me lembro, sim: eu era todo uma carranca, um estranhamento, uma sensação de estrangeirismo que nunca saiu de mim - eu experimentava da invisibilidade de outrora, e ela nunca havia surgido tão forte.

Meu irmão corria em círculos: era o mais rápido, o mais ágil, sempre um dos últimos a ser cutucado no jôajuda. Ele gargalhava insuportavelmente, era cruel a maneira como ria, como se achava, como liderava. Tudo o que eu não fora. Na verdade não havia crueldade naquilo tudo: eu é quem sempre achei que a crueldade estava em todo detalhe do mundo, uma conspiração irritante contra minha minusculice, minha pequeninês infeliz.

Olhei para suas sombras sob a luz do sol refletida na parede. As suas silhuetas inquietas eram um pouco do que sobrava para além dos gritos e palavrões. Eu lembro que vivi. Era ainda pura inocência, enquanto suas mãos se agitavam para o alto, num momento de quase silêncio enquanto se distanciavam. Os gritos iam junto, ficava eu novamente na minha perpétua invisibilidade.

Sobrou de seus pés, um tanto, um fiasco, um nada - e eu ali, atônito sob a perspectiva de que meu passado era outro. Este, não. Este nunca.

E,a,p'

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Obsessão - reedição

Quando eu lhe disse, Quero dela um absorvente, ela largou a vassoura no chão, e acertou a minha cara com força. Por um momento senti raiva, pensei mesmo em perguntar, Que houve sua puta, tá doida, porra?, mas depois achei compreensível, e diria mais, tolerável, a sua reação. Ora, imaginei de repente, o que não faria eu, caso ela chegasse para mim, e pedisse uma... O que seria tão pessoal quanto um absorvente e ao mesmo tempo, causasse tanto nojo como nela causou. Ela, a zeladora do escritório, sempre fora uma pessoa amável até então, mas deste dia em diante, evitava mesmo me olhar. Fiquei chateado, mas não pude deixar de concordar com ela: Desta vez havia ido longe demais. Mas o fato é que não conseguia tirar de minha cabeça uma maneira de me sentir mais íntimo daquela estagiária da repartição. Mas, eu, que não passo de um cobrador de telemarketing, no máximo, para enfeitar, aprendi num filme, Operador de Fotocopiadora da própria empresa, um burro, miserável, que mal tem o ginásio completo, jamais teria a oportunidade de lhe dar um beijo ao menos, quem dirá, chegar próximo de sua calcinha, onde, obviamente, estaria mais perto de sua vagina, lugar onde ocasionalmente eu gostaria de chegar, logo dela, que era letrada, de gente grã-fina. Mas levei comigo deste episódio a lição de que as coisas não devem seguir então este caminho tão rápido, tão afoito.

De qualquer maneira, deixei de lado a zeladora, que dela era tão amiga, e voltei a me concentrar no seu passar. Ela sequer me olhava, mas eu seria capaz de adivinhar dela uma miligrama a mais de pó de arroz que ela pusesse em seu rosto, de longe adivinharia, inclusive, como foi o caso, os dias de sua mentruação.

Houve um dia que tomei coragem, respirei fundo na minha bobinha, e superei até mesmo minhas crises de asma neste dia, fui até a máquina de xerox, e lhe dirigi o melhor, Bom dia que pude dar. Ela me olhou de soslaio, depois para cima, sem mover o pescoço, e em seguida, balançou a cabeça soltando uma baforada que entendi como enfado.

Neste dia, ela estava visualmente diferente, e seu humor também, pois inquietante estava sobre a cadeira, e aí foi que percebi que estava menstruada, pois ela usava uma calça apertada, e com a qual pude perceber pelo volume que fez em seu ventre, o tal absorvente.

Fora o detalhe que freqüentemente ia ao banheiro, creio que para trocar o dito cujo. Deduzi que ela tivesse grande fluxo de sangue a sair por entre suas pernas, mas pensei, Ora, tudo bem, toda mulher menstrua. Mas o fato é que se me pedisse agora para descrever seu rosto, eu não conseguiria, daquele dia em diante, deixei de lado a facinação que sentia por ela em si, rosto, bunda, peitos, qual o quê!, e passei a prestar atenção no volume do seu ventre, que aumentava conforme chegávamos mais ou menos no dia dezessete de cada mês, raramente passava disto. E para mim, que já tive mulheres em minha cama de toda maneira, achava um mistério elas sentirem nojo de seu próprio sangue. Elas achavam um absurdo que eu quisesse trepar com elas Naqueles dias, ou, Neste estado.

Mas o fato é o que mistério que me envolveu por estes dias a vagina da estagiária, me deixou comovido a ponto de me pegar chorando pelos cantos da casa por não poder apalpá-la. Meus amigos riam de mim, e achavam que tudo devia-se ao meu bom humor habitual. Mas desesperado eu estava.

- Vai tomar no cu, Aurélio. Como é que tu, homem feito fica chorando por mulher. Logo tu, o papão das meninas, o comilão, o patuazão daquele escritório? Cria vergonha, seu arrombado.

- Não é ela, Fred. É o absorvente dela. É o mais próximo que eu vou chegar da xoxota dela, manja? A mina é toda grã-fina, toda cheia de não-me-toques...

- Caralho, tu é nojento meu irmão. Vá se foder, viu... Tocar uma bronha não adianta pra esquecer essa nojeira?

- Não, eu não consigo, e desatei a chorar em cima da mesa; Fred me levantou pela gola da camisa e me deu uma bifa, mandou que eu tomasse vergonha na cara, e me disse,

- Homem que é homem não chora por isso não, porra! Vai te lavar, seu merda! Emporcalha todo o tira-gosto, o puto! O Fred não entenderia. É casado. Pra ele, tanto fazia a esposa dele, a Lídia, estar menstruada ou não. Todo dia era dia de trepar com ela e com outras. E ela, uma ninfomaníaca do caralho, não negava fogo nunca.

Fred era um homem de sorte.

Foi no outro dia seguido de uma bebedeira que pedi para a zeladora me conseguir um absorvente dela. A mulher se sentiu ofendida, e conforme disse, deixei para lá, mas não de todo, pois cinco minutos depois eu já estava atrás dela novamente a pedir que ela conseguisse o tal. Ela se deu por quase vencida e me perguntou então, O que é que tu vai fazer com uma porra de absorvente, Aurélio?, lhe respondi que sinceramente eu não sabia, mas o fato é que se ela não o conseguisse eu iria ter que invadir o banheiro feminino e perderia o emprego por culpa dela. Ela se irritou comigo, mas enfim disse que Sim, porra, contanto que eu a deixasse em paz e não lhe dirigisse mais a palavra. Fiz uma cena, lhe disse que aí seria demais, mas acabou que ela disse que iria ver. Mas eu deixaria de falar com ela sem problemas, se para isso fosse necessário ter em mãos o que eu tanto queria.

No dia seguinte, uma terça-feira, era quinze. Eu não aguentava mais esperar pelo dia dezessete, e quando a quarta-feira chegou, era dezesseis, achei que fosse o dia, pois ela estava freqüentemente indo ao banheiro, voltava com uma cara de nojo, passava o braço na boca, e de minuto em minuto ia novamente ao banheiro, fazia a mesma cara, e antes mesmo que pudesse chegar ao meio do escritório, voltava para o banheiro.

Perguntei a zeladora se já não teria chegado o dia, mas ela fez que não com a cabeça e disse que nem sinal de absorvente nas lixeiras do banheiro. Eu já roía todas as unhas, quando finalmente chegava o dia dezessete, e eu já não dormia mais, pensando na possibilidade de no dia seguinte ter o seu absorvente em mãos, com o sangue de seu útero, ali, pertinho de mim, onde teria encostado sua calcinha, e claro, sua vagina, saberia mesmo se ela tivesse pêlos sobrepostos, pois neles sempre ficam os pêlos do pubis, ou se ela os raspava. Eu sinceramente não sabia o que fazer: se cheirava, se o lambia, comia, se punha nos olhos, se lavaria meu rosto nele, ou guardaria de souvenir numa gaveta de minha casa... Mas então foi que todos reunidos na repartição, a comemorar, todos os funcionários batendo palmas, dando-lhes as mãos e os parabéns e o chefe de braço dado com ela, a estagiária, que estava com um sorriso amarelo.

A zeladora na porta, e eu perguntei, O que houve? Ela menstruou?, não sei em que ordem estas perguntas vieram, mas o fato é que ela me deu a resposta de ambas as perguntas em uma única frase que me soou mais dolorosa que uma facada no peito, tal qual senti no fim do expediente, quando de tanto pensar na notícia que ela me disse abraçada com a vassoura,

- Ela está grávida.

(Uma homenagem descarada a Rubem Fonseca, por seu Secreções, Excreções e Desatinos. )

Infinito sem Nome

É na curva do horizonte
que se percebe
o quanto ainda
se pode ir mais longe.

E,a,p'