sábado, 12 de dezembro de 2015

de última hora

canto um canto descontente
por minhas derrotas diárias.
é dura a batalha do despertador
com a vontade de fechar os olhos
e imaginar ou viver onde
orfeu estende seu lençol de estrelas.

mais dura é a batalha do espelho,
que reflete três pontos distintos na linha do tempo:
o presente,
onde as luzes refletem minha carne escura,
meus olhos puxados,
as cicatrizes e as marcas de cigarro;
o passado,
que é a imagem envelhecida refletida, depois das luzes,
com toda a fadiga desses anos;
o futuro,
que é para onde convergem todos os movimentos
e deles se esvaem o cansaço do tempo que escorreu.
de todas as maneiras,
a batalha é árdua,
e custa ver neste espelho um corpo
que já viveu mais de duas décadas.

a última batalha do dia
é a realidade que corta feito uma navalha há muito amolada
com os excessos do tempo a ferrugem corroem
e da carne desce o líquido viscoso, antes de penetrar na carne
e, só aí, vir o sangue.

queria chorar menos
as horas
que não podem voltar,
entretanto,
queria chorá-las até que enfim
nalgum ponto dentro de meu corpo
doesse o ínfimo dessa insuficiência que me causa
ser o guerreiro de tantas batalhas --
das quais nenhuma safo-me vencedor.

eu só queria pedir desculpas
pela raiva que sinto
da vergonha que sinto
de ser triste
mesmo quando tudo parece tão completo.

talvez seja esse meu sangue lusitano-hispânico-balcânico
que tenha lírica sofredora
de tantas batalhas
e os queixumes do banzo que aqui se mistura
com o sangue dos índios mortos
de tantas batalhas,
[genocídios]
mas deus,
como disse um companheiro

"para que tanta batalha
cê é um amante
não um guerreiro?".

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

aliens (i, ii e iii)

olho para a vida como quem observa o fim do dia,
toda tarde se aurora o sol, coroa a noite,
num roxo-alaranjado-azul de nuvens cinzas,
e cresce por trás a lua, e dá a sua volta de 90 graus
entornos do nada,
rasga a malha do universo,
deixa apenas o reflexo da existência da morte,
quando vem a morte
a lua se vai, para aurorar em outro lugar --
mas a vida é assim para mim, que quando chega a madrugada
ganha ares de viver mais,
de pensar mais,
de se sentir mais à vontade
dentro do corpo em que fui condenado viver,
refletindo sobre a morte, a vida,
ou o que quer que seja,
enquanto a poeira do cosmos
recobre meus cabelos, e os seres interestelares,
de vida tão primordialmente superior,
vão tecendo os caminhos pelos quais
ninguém precisa atravessar o caminho de ninguém.
-------------------------------------------------------------
observo o mundo
o mundo me observa
nós sabemos tudo um do outro
e ao mesmo tempo nos desconhecemos
eu sou só mais um,
mas existindo inexisto,
o mundo é ele todo,
nas páginas dos livros,
diante dos meus olhos,
o mundo é azul pequeno,
mas nesse quarto ele parece infinito,
e eu não posso nem ao menos tocá-lo,
fazê-lo meu, pois que não sou parte dele,
e nem de outro mundo, mas não sou uno,
como eu, outros aliens andam pela terra,
unidos em suas unidades,
unidos em seus egoísmos,
acabados em seus começos,
condenados em seus concebimentos,
julgados pelos seus julgamentos,
os aliens se dirigem aos seus quartos,
descrevem palavras ininteligíveis,
sem formas aos olhos mundanos,
tão fracos, tão fortes,
tão vivos, tão mortos.
quando formos carne,
união de toda forma,
os cães uivarão para a lua,
e saberemos que a hora é aquela
meia-noite eterna
para os seres que não dormem
conquanto se deslumbram com a mais boba ideia.
------------------------------------------------------------
abandonei-te um pouco,
como sempre faço nas vezes em que tenho
que purificar aquilo que chamamos
alma.
mas saiba já que viajei um pouco dentro
do que fui chamando de praticidade,
pelo peso que em meu peito rasgava
dizer cada uma dessas coisas
que sempre digo
quando quero te maltratar -- me maltratando
sempre
no final.
mas não há final,
porque sou feito de extenso oceano,
silencioso
e horrível
na face dos peixes abissais
iluminando a escuridão
apenas para afastar os que ousam aproximar-se
do sentimento cego que vagueia pela imensidão
sentimentos que raramente veem a luz,
apenas quando enquanto em flama
queimam ardentementes
no vácuo e sem dor
sem oxigênio
não há fogo
apenas o sentimento,
o flutuar das vozes
que sempre estão aptas
a dizerem o que há no meio
de tudo o que há.
sou alienígena
sem lar
sem planeta
sem sol
sem lua
sem água
cultivando um câncer
a cada turno de morte
a preço de salário.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

de si para si (momentos mornos)

dos bons momentos
quero o pudor de não sabê-los
e deixá-los tenros,
descansando mornamente em apenas estar
em banho-maria, esquentando o frio esquento,
para a delicada delícia de saborear
depois
o que outrora fora estrago,
o que outrora fora esmiuçar o que se pôs,

mas é que na hora
a gente não toma tento
do momento
e ele fica assim desatento por si mesmo
como se desejasse
ser mais que mero elemento
do agora,
gerundismos,
e eu me perdoo,
por ser intertexto,
mas há coisas que tomam forma
no momento em que são feitas.

sábado, 18 de julho de 2015

suindara

nem sempre fui assim rude,
endureci-me pelas pedradas,
pela pedra fiz poema e alimento
para a vida inteira,
sentindo o profundo das coisas
mesmo na densidade absoluta
das colinas
que tocam o céu e as nuvens
encravadas no chão,

não menosprezei nada.
nunca.
perdoai a praga primeira de minha boca,
perdoai meus pecados,
meus ais,
meus vis instintos de carne,

perdoai também o que sequer se possa dizer
pecado.
a coisa mais ínfima,
dentro da psiquê
que sequer sente culpa,
perdoai, pois,
sei bem que delas
tudo se pode sangrar,

conquanto meus dedos entranhassem assim,
vulgares,
em corpos e orifícios,
saber sagrado
o grande cu
e a santíssima buceta:
eu nunca me atrevi a me atrever.

mais que a língua se umedeça
e de tudo não mais meu corpo se apeteça
porque disso não me entumeci
até o último fio de cabelo
da manteiga e da gordura
num banho para o abraço.

quando o céu virar um mar de fogo sobre nossas cabeças
saberão que antes de tudo
antes de ser o sacro
o corpo era vil
e o enxofre que cairá sobre todos
não distinguirá
bom de mau,

por isso digo,
que como a montanha,
sou encravado no céu,
e toco a terra,
como o pequeno demônio
encravado em teu ouvido
sussurro palavras obscenas
camufladas de amor eterno,
mas nunca fui assim tão derramado,
antes,
muito antes disso,
eu era pedra
e ela fez de mim poema, verso,
multiverso.

temporal desiludido

não é que o tempo seja absurdo
o absurdo do tempo é que ele é.
sem mais nem menos.
ao certo descobriu-se incerto
mas na incerteza se fez dialogar
tão são de todo o destino
que nunca mais quis olhar para trás.

como o tempo, levo a vida.
sempre para frente,
sempre incerto na certeza,
mas cheio do vigor
de quando deu-se
o derradeiro fiat lux.

"agora, amanhã e para sempre, amém."
foi a santíssima trindade que criei
para que quando dúvida,
lembrar sempre do tempo
e dos seus pés descalços
que carregam consigo
em suas costas,
o peso da eternidade.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

o medo II

amanhã é palavra incerta
até porque você disse um dia
- até amanhã,
e até hoje estou parado aqui.

o medo I

eu só tenho medo desse amanhã
o resto, todo o resto fica pra se esquecer
mas amanhã é o dia
o pior dia de todos os tempos.

por causa das tardes de sol,
dos dias nublados,
das noites violentas,
da esquina que sempre à espreita
se assemelha
ao jogar de dados do destino.

por causa da próxima página,
por causa do livro inteiro,
nem tanto o fim,
o fim é a certeza ortodoxa de tudo.

se eu acordar tarde
se eu te ouvir gritar
se eu falhar de novo
se eu possivelmente falhar mais uma vez,

se eu estiver sozinho,

se todas essas coisas
sequer acontecerem:

amanhã continua sendo o pior dia de todos os tempos

se você não estiver lá
amanhã,
amanhã será o medo corporificado
o medo em carne e osso
a face lúgubre encardida de sombra,
e sujeira, e sangue
do tempo,
vestida num corpo,
num dorso,
no osso,
no poço
e no fundo,
o olho a fitar
e engolir a tua garganta de grito mudo,

uma queda rápida,
que não dura
mais que o sono das palavras.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

latto/strictu

a j.a., pelo que é onipresença

no interim de uma vida inteira
eu ainda não havia atinado
que as coisas se tornam mais claras
depois que tudo é escuridão.

que os pedaços do que era inteiro
são inteiros em miniatura
e que cada um dos seus inteiros
são feitos de inteiros completos.

e que, além disso, a solidão existe,
e que não diferencia em fazer companhia
em quem é alegre
ou quem é triste.

------------------------------------------------

tudo se perde depois do encontro,
eu perdi minha cabeça
quando deixei que o teu olhar
encontrasse o meu

e tua cabeça cansada
encostasse no meu ombro
e no labirinto do mundo
que ganhei quando me guiei na tua mão

--------------------------------------------------

o entendimento desse mundo
o entendimento de tudo
parte do mais ínfimo nada,
da menor partícula nunca desarranjada

dos anos e anos que conseguimos
resumir em décadas, séculos,
e de tantos milhões, saber que
ainda não passamos de meras crianças

é o que faz a cabeça parar
para continuar em seguida
noutra linha, noutro caminho
que se percorre calado, sozinho

sem sair do lugar.

cada ser tem em si o universo,
que quando chocado em sua semelhança
acaba por destruir o que outrora
devia ser união.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

vigia/vigilante

Não tenho ainda um título/nome pra essa história (quem me conhece sabe dos projetos atuais de escrever uma HQ - graças ao vício mais recente nesse gênero que releguei por muito tempo), mas cá está o vigia/vigilante, o desenho do uniforme claramente inspirado/copiado no visual do Demolidor, mas, armas em suas mãos, como o Justiceiro, e como este o senso de justiça/vingança e nenhum poder psiquico, ou super velocidade ou qualquer coisa do gênero, apenas coragem.

O uniforme, pensei, deve ser resistente, impôr respeito, e assim o faz, o seu alter-ego, que ainda não tem nome, é um homem de 24/25 anos, mediano, entretanto, a roupa toma proporções de músculos para que dentro dela, em locais vitais possam-se ser inseridas placas de alumínio, que, se não absorvem o impacto completamente, pelo menos não o perfuram totalmente - o processo de costume será doloroso. Cotovelos e joelhos possuem reforços, já que o homem por trás da máscara, para além das armas, os utilizará muito. Como disse: sem super-velocidade, pelo contrário, lento, pesado, porém, resistente, o uniforme foi feito para impôr-se, não impressionar, cada caminhada de 100 metros é feita com esforço, o calor maçante do uniforme, do peso do alumínio espalhado pelo corpo.

A história, claro, pautada na vingança, de um homem comum, que investiu contra um bandido e acabou matando-o, mas, aos olhos da justiça, que é cega, ele tinha que pagar pelo crime, como consequência, 5 anos recluso, em completo e total silêncio, e no meio-tempo da prisão, sua família fora assassinada pelo irmão do bandido ao qual matara. O que seria humano, nessa situação, chorar e lamentar, ou vingar-se?

A falta de símbolos, logotipos, marcas, ou quaisquer coisas do tipo, deve-se em parte ao fato de que o anti-herói (no melhor sentido da palavra) que vemos aqui, não é um símbolo -- saído da prisão é impossível conseguir um emprego, já que ninguém confia num ex-detento, o personagem se recolhe à sua condição de protetor, sendo um mero vigilante noturno, andando nas madrugadas do seu bairro, e logo depois da cidade (que será Fortaleza, claro), fazendo justiça com as próprias mãos, tendo como princípio, o fato de que se os bandidos saem para matar e morrer, ele só sairá de casa para matar.

No intuito de ser amargo, silencioso, injusto aos olhos da justiça, pelo ar impiedoso, não será apenas uma história "de herói" - caiba talvez algum estudo social da anatomia do que forma uma sociedade violenta e corrupta, do preço do silêncio e de posicionamentos sócio-culturais abafados - sobretudo, este não vai ser um herói, apenas mais um homem comum.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

casa-mulher

eu te fiz minha casa,
concreta,
e da minha imaginação
te fiz branca
tão branca
como a neve que nunca vi.

eu te fiz minha casa,
inteira,
um quintal grande
com flores e frutos
de se germinar
e viver da terra.

te fiz minha casa,
mas esqueci,
completamente,
de nela pôr
portas e janelas.

sábado, 20 de junho de 2015

memória 2

como eu fixasse assim
profundississimamente
em teus cabelos
para avivar a memória
algo assim turvo
algo assim opaco
tomou a memória
das coisas que supunha
findas
sem nem ao menos tê-las
começado,

e penetrando intimamente
em cada pedaço da caverna
onde guardei teus registros
pus-me atordoado pela perda
do que não tinha
porque da segunda vez que te vi
teus cabelos eram outros
teus olhos eram óculos
teu vestido era florido

a memória te reguardou
pelo que não fez
pelo que não é
a fábrica trabalha arduamente
produzindo fumaça
poluindo os dias
com intragável esperança.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Quarto 204

Wong Kar-Wai homenageou um quarto de amantes, número 2046, recompondo com um nome soberbo em minha opinião, brotado sabe lá Deus de onde: Os Segredos do Amor. Vou lhe dizer uma coisa: posso não ser o detentor dos segredos do amor, como o meu quarto-irmão famoso, mas sei de muitas noites dormidas e não dormidas passadas entre quatro paredes entre duas pessoas, com vontades e desejos, bocas cheias d’água, beijos que irradiam da noite, coisas sussurradas ao pé de ouvidos de mulheres, de homens, que lhos faziam sorrir maliciosos, como que a serem observados. Eram sim, mas pareciam, e eu quase chegava a desconfiar que sim, olhar para minhas paredes, meus papeis de parede floridos, meus lustres. Sei que estes amantes também o deixavam de ser aqui também, muitos deixaram de se amar aqui, fingiam não conhecer, ou deixavam de viver aqui. Minhas paredes, floridas em marrom-claro, com pequenos detalhes em madeira nos cantos das paredes, aonde iam-se as dobradiças invisíveis das portas que não existiam a separar os dois pequenos cômodos, já foram manchadas de sangues de pessoas que não acreditavam na beleza de amar, ou que por acreditar demais nesta beleza é que faziam jorrar as lágrimas do pensamento em meu corpo. Quis enxugá-las certas vezes, mas as paredes, por mais forçosos os movimentos que tentava fazer não conseguiam alcançar os olhos abertos dos pobres homens que se viam encurralados nas suas obsessões. Nem ao menos fechar os olhos deles eu podia. Mas aqui não se viu apenas tristezas, vi casais apaixonados a comemorarem anos de namoro, anos de casados, anos de felicidade conjugal que na minha plenitude de quarto de hotel sou capaz de enxergar como possível.
Sou o quarto intermediário de um pequeno hotel, como me esqueci de citar no fervor de minhas palavras. Quarto 204, faltam-me um 6 para me equiparar ao quarto cinematográfico de Kar-Wai, mas isto não faz de mim um aposento infeliz, muito pelo contrário, já que faço parte de um prédio antigo, digo que sou muito feliz em minha vida. Observo todo movimento de um centro de cidade sujo, e às vezes o que vejo aqui dentro de mim é uma explosão de beleza bruta. Pode-se dizer que em mim passa sempre um filme na cabeça de cada um dos que freqüentam estas paredes.
Um escritor certa vez entrou porta adentro com uma idéia fixa na cabeça que não conseguia desenvolver de maneira alguma. Tirou toda a roupa, ficou à vontade e sentou-se, olhou para minhas paredes, alisou-as e perguntou a elas que amores diferentes vocês já não viram serem praticados aqui dentro, ein? Daí passou a escrever e em menos de três noites passadas aqui dentro saiu com uma belíssima resma de papel sob os braços, e ao passar pela porta não esqueceu de beijar as paredes e prometeu retorno breve para agradecer-me o que tinha feito por ele. Só um louco acreditaria nesta história de que um quarto de hotel lho inspirou.
Sei que há uma quantidade inesgotável de casais que se encontram aqui para verem-se, já que as paredes invisíveis do mundo não lhos transmitem segurança de saírem assim de mãos dadas, dizer um ao outro, eu te amo, e ouvir do outro, eu também te amo. Um homem forte e vistoso sempre vinha aqui durante às tardes de quarta-feira para se encontrar com uma bela mulher loira, que no começo de tudo sempre vinha satisfeita, com palavra nenhuma pronta na boca, além de um beijo que trazia pronto para dar-lhe, e enfim abraçarem-se, enquanto degustavam de um champanhe, de um vinho, de uma bebida que bebericavam enquanto dançavam valsinhas tocadas por um aparelho de som por aqui deixado. Depois enfim, tiravam suas roupas, deitavam-se sobre a cama, amarrotavam os lençóis, e as minhas paredes tinham trabalho para abafar os sussurros que assim eram por conta deste trabalho dedicado de não deixar o quarto vizinho ressoar esses gemidos de amor, isto sim.
Cansou-se a pobre mulher, não soube de quê no começo, na minha sabedoria de concreto, mas depois enquanto conversava comigo entendi que o homem era casado, pois pude ver depois seus dedos de marca de aliança retirada. Ela própria não sabia disto, apenas o questionava por que você não minha tira desta clandestinidade? Enquanto ele desistia de tudo, depois de ter com ela sobre os lençóis, vestindo-se apressadamente, abotoando a blusa, a calça, o cinto e vestia-se, deixando a pobre mulher cada dia mais triste, cada dia mais cansada daquilo tudo. Não sou capaz de ver uma mulher chorar, pois apesar de ser, apenas o é metaforicamente, não tenho coração de pedra para suportar tanto. Um dia, tendo ele chegado mais cedo que ela deixou sobre a pia do banheiro sua aliança, foi aí que utilizando a força de movimentos que nunca antes ousei fazê-lo, escondi sua aliança enquanto ele tirava os óculos para lavar. Depois que brigaram, como estava a ser costume rotineiro do casal, a mulher sentou-se sobre o vaso, e da pia deixei cair a aliança, enquanto ela olhava para o chão, eis que a aliança, girando sobre si mesma parou sobre seus pés brancos e descalços e tendo pego a pequena auréola que lhe faria a discórdia, apenas limpou seus olhos, refez sua maquiagem e saiu batendo a porta, não sem antes atirar sobre o homem a aliança e dizer que tinha vergonha de ter sido feita de palhaça por tanto tempo. Não sou um quarto vingativo, mas acredito que a justiça deva ser feita a quem merece tê-la. Quem era ela além das portas não me interessa, mas sei que a vida do homem, o cinismo que o envolvia também estava evidente na maneira como não saiu do quarto, puxou de seu telefone e ligou para outra mulher. Olhando desta maneira, creio que há quem pense que esta minha atitude foi na verdade muito justa.
Mas nem tudo são cinismos e vendettas. Pois há um belo casal, singelíssimos, que vêm também aqui de ano em ano, numa data certa, que não muda nunca, nem que chova, nem que esteja a cair o céu sobre as cabeças dos homens, se encontram há exatos 40 anos debaixo deste mesmo teto, põem sempre a mesma música lenta, seguram as mãozinhas juntas, uma pertinho do rosto do outro,  e dançam a valsinha sorrindo, dando beijinhos na ponta de seus lábios ressecados de sol, e sentando-se ambos logo após na ponta da cama conversam, riem, não se deitam nunca, seguram suas mãos, olham a janela, que é aberta pelo senhor de bigode vistoso, que imita uma cena que ocorreu há tantos e tantos anos. Não chego a chorar, pois então, jurariam que eu estou cheio de infiltrações. Mas, uma hora depois, dizem sempre os dois um ao outro, eu te amo tanto, minha vida, e eu te amo tanto, meu querido. Eternamente, repetiam um ao outro. Nunca batiam a porta, encostavam-na lentamente, dando sempre a certeza de que vão voltar ano após ano.
Mas assim como não há apenas beleza e maldade, há o cômico. Uma cabeça em especial bateu sobre as minhas paredes diversas vezes, mas que por mais que possa doentio de se dizer ela gostava a pobre mocinha. Quanta obscenidade ela não ouviu dizer consigo e de prazer continuar a amar o homem que com ela ia – às vezes mais de um homem, mais de um casal, coisas das mais absurdas, de fazer chocar até um quarto de hotel tão discreto. Mãos na sua cara, nas suas coxas, dedos a penetrar por entre os orifícios possíveis, palavrões, pedaços de madeira e couro. Sangrou muitas vezes, mas deixou-se quedar sobre o peito cabeludo de seu amante cruel a sorrir, beijá-lo e dizendo que eu te amo. E eu quando começo a achar que entendo sobre o amor, sobre o que move este sentimento humano, eis que me surgem estes tipos, que atordoam meu discernimento que tento formular dia após dia, noite após noite, cliente após cliente sobre o amor. Que entenderei se entre quatro paredes as pessoas são outras, possuídas de tolas vontades que depois de algum tempo, são nada além que puro cansaço.
Quando vem a chuva, presencio pessoas que entram mudas, saem caladas, observam as janelas e daí penso, questiono: quem será normal: aquele que chega falando de si para si ou aquele que não cai nesse desvario e apenas deixa sua mente ser guiada pelo cansaço? A chuva traz os olhares mais tristes por trás de vidraças molhadas, traz relatos solitários, solitários como a noite do centro. Fumam enquanto vão dizendo para si mesmos, estou muito bem, acredito que isto, este mundo, seja uma grande frustração. Tento esquentá-los, fazê-los enxergar o aconchego de um lar. Mas como fazer sentir isto àqueles que trazem consigo a alma estrangeira? Pertencentes a lugar algum. Ou de todo lugar, vá lá.



O Quarto 204 está vago?
Está sim, senhor.
Vocês poderiam me alugar por este fim de semana?
Sim, sim. Basta assinar aqui.
Tudo bem, aqui ó. Pronto. Tudo certo?
Claro, claro. Trouxe alguma mala?
Nenhuma que precise de ajuda. Está tudo aqui.
Subiu resolvido a entrar, fechou-me as portas e diante de uma mesa, sentou-se com uma cadeira que trouxe da cozinha. Abriu uma maleta tirou as folhas de papel que um dia eu já tivera visto. Era ele, O Escritor.
Boa noite, senhor. Quanto tempo faz, falou retirando as roupas e sentando-se à beira da cama. Tenho que te dizer, que antes de ser escritor de romances, esses pequenos folhetins, eu já estive muito aqui com a minha mulher. Não a minha esposa, mas a minha mulher. A única que amei na verdade. Encontrávamos-nos afoitos para nos vermos nus aqui neste quarto, e então, nos víamos, tínhamos um ao outro nos braços, ela fazia tudo o que eu queria, Sr. 204. Acho que foi aqui que falei sobre Wong Kar-Wai, sobre o quarto 2046, e, meu Deus, que filme sublime. Por sorte encontrei um quarto que me reavive todas as lembranças. Talvez não seja tão bom assim, mas... Arh, vida! Que saudade de minha Jane! Exclamou enquanto derramou uma dose de uísque gargalo adentro.
Não encontrou até hoje nenhuma mulher que ocupasse o espaço dela?
Nenhuma, Sr.. Nenhuma. Para mim, nenhuma outra mulher merece entrar aqui, deitar nesta cama, brincar comigo, fazer amor comigo. Porque só com ela eu fiz amor. Com as outras é tudo aquilo que as pessoas costumam fazer por aí, utilizando aquele linguajar vulgar das ruas, coisa mais crua, mais cruel também. Com as outras a gente trepa, a gente fode, come, dá umazinha, descabela os pentelhos, despenteia o palhaço, mete o ferro, desce o pau, mete a vara, essas coisas. Por mais que eu não queira que seja isso, é sempre isto que vai ser. São pernas diferentes, são cheiros diferentes, que você se esforça por dizer, ei, isto é amor, cara!, mas que no fundo, você sabe que não há como mentir para elas. Pior para nós mesmos, Sr.
Você está bêbado.
É, devo estar.
O Escritor riu de si mesmo, empunhou da máquina de datilografar e disse para si mesmo que estava provavelmente louco, pois estava conversando com um quarto de hotel, e disse isto em voz alta. Não chego a me ofender, ele mesmo pede desculpas, contradizendo-se no instante seguinte.

Wong Kar-Wai disse que as pessoas tomavam num trem o rumo certo sempre para o futuro em 2046, onde lá vivem as ilusões perdidas. Perdidos eram também os corações que iam até lá para buscar neste futuro alternativo, incerto as ilusões.
Vou para o passado.Tranco a porta do quarto 204, retorno ao dia exato em que conheci o corpo da mulher com a qual tomei a liberdade de chamá-la minha. Minha mulher.
Deslizo os dedos por entre as teclas duras e desgastadas da máquina e é ela quem me leva até o seu olhar castanho, que cruzava as lentes dos óculos enquanto que o quarto onde permaneço, que é este 204, vai se renovando a cada palavra dita. O passado volta, mas eu continuo o mesmo, até mais velho pareço a cada pé volvido ao meu próprio acervo de memória. Ela cruzaria este bar, olharia, reconheceria, pois o amor atravessa, não o tempo, mas a fronteira vaga do coração, que não guarda a pele, o cheiro, mas sim a essência do solitário sentimento de reconhecimento que penetra na cabeça de cada indivíduo que se apaixona.
Lá vem ela.
Ela abre as portas dobar, olha em minha direção, passa pelo meu olhar, decidida a não fitá-lo, encontra um sorriso amigo ao fundo do bar, seus amigos jovens, que um dia foram meus também. Pele enxuta, os dedos soltos a apontar o que se faria riso, e as memórias ainda por remontar, ainda por tornar-se. Enquanto que eu vou vendo-a, remoendo-a, e meu sonho, e eu mesmo e todo o quarto feito num amontoado de papéis que caem depois de suspensos no ar. As paredes deixam-se cair em sua matéria mais fina, areia que inunda meus bolsos, e enfim todo o quarto.


O que é isto, Escritor?
É o meu amor se esvaindo.
O que é o amor, Escritor?
É a eterna busca.
Uma busca?
Eterna. Nunca se deixa de buscar o amor, Sr. 204.
Mais parece um sonho. Um ciclo vicioso.
Não deixa de ser. Quanto mais perto nos encontramos de achar que estamos perto de encontrá-lo – o amor –, eis que a realidade amorosa das coisas acaba por tornar-se um amontoado de areia. Esfarelar-se nas nossas mãos é a primeira coisa que acontece ao objeto Amor, quando se diz encontrado. Estou sendo claro?
Não.
Como suspeitei. Eu sinto muito, mas é esta garrafa de uísque, esta lua cheia, acaba por me deixar comovido, sentimental feito o diabo.
Fosse uma garrafa de conhaque...
Não sabia que as paredes conheciam poesia.
As paredes sabem bem mais que você imagina, Escritor. 

Fortaleza, 13/04/2011

terça-feira, 9 de junho de 2015

expectativa

criei o amor do nada.
assim, pelo olho.
da lágrima, da ansiedade,
criei o que acho ser amor,
criei o criadouro,
matei a física,
matei einstein,
matei o espaço,
o tempo,
matei a mim mesmo
quando te inventei para mim.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sem Nome nº 77

quando foi que de repente me fiz assim tão frio,
mesmo no regaço do vestido, na mão na mão,
ainda assim, esquenta coisa nenhuma esse meu peito,
perito em se questionar se é hora de se entregar.

pelo tempo que passamos juntos deveríamos saber
que quando a gente se vê ainda tem aquele tremor
o frio na barriga, as pernas inquietas, o olhar perdido,
mas eu, que sou líquido, já me adestrei, cachorro de rua;

embora por dentro a coleira tenha-se rompido
e duma mordida eu tenha arrancado um pedaço
de nossa história e levado comigo, para enterrar no quintal,
profundamente, escavador, mineiro: faço da memória meu ouro/meu osso

quando dá vontade, desenterro, lambo, mordo, contemplo,
para guardá-lo novamente e ser assim, sem fim,
todas as vezes em que eu olhá-lo, enterrado -- algo assim
que julgava morto, as nem tanto.

foi de ver-te, tuas pernas grossas e pele trigueira,
que me refiz um pouco, encontrei ali, o fim
e o começo do primeiro gole,
1991 a 2013, a vida escorregava densa como fosse óleo

sem nos misturarmos, detive-me num sono malicioso,
onde, com manhas de gato faminto, desaguei a contorcer-me,
mas era sono charmoso: o tique nervoso, de coçar os olhos
e cisco nenhum impedia de contemplar o frasco de veneno

que porventura, no espelho olho, e também sou.
mas, como e quando foi que fiquei tão desprezível
ou desprezante, desprezado, desesperado, de um grito mudo,
de um grito surdo, por saber: onde eu estou?

minhas mãos continuam as mesmas, meus dedos,
minha boca, meus dentes, cada poro deixa correr ainda
o suor, e os pelos, todos ainda em seus devidos lugares.
página 1, página 2, as canetas riscam o silêncio.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

edgar

era uma vez aquele homem. mas era uma vez de ter-se pena, porque aqui era seu fim, embora comece outra história, a de edgar.

pobre edgar.

edgar era pai de família, casado há 35 anos com a mesma senhora gumercinda, aposentado das agências dos correios, concursado, o inss, todas as contas em dias.

saía todo santo dia 15 de cada mês, pagar as contas na lotérica, apostava na mega-sena, 40 anos apostando, ganhou na quadra uma vez -- com o dinheiro comprou uma tevê sharp 14 polegadas em 1987.

era o amor dos filhos, o amor de sua esposa, o amor de seus netos, o amor de seus amigos -- seu edgar era um amor. todos moravam na sua casa.

os netos faziam algazarra, o velho nem dormia, mas era tão amoroso, que a eles fazia companhia.

dona gumercinda comprava vestido e jóia, edgar amava ser útil, amava o agrado, era um marido pacato e dedicado -- embora gumercinda se maldissesse do seu cheiro de naftalina, edgar dormia na sala, cadeira de balanço, gumercinda, amada, esparramava-se em solitária harmonia.

mas eis que dia 15 de julho, ia conferindo a numeração da mega-sena, entra despropositado o carro, edgar voa 15 metros à frente, quebra as pernas, a dentadura dupla e os óculos vão longe. edgar que era só amor, era uma vez.

mas acordou de súbito, e assinou a papelada do hospital, 3 dias depois, o joelho estilhaçado, andava sem sentir que suas pernas desmontavam.

juntaram seus pedaços com uma pá. puseram na maca, cola, parafuso, prego, martelo, um pedaço de ferro, costura um sorriso, edgar até sorria.

alta do hospital, edgar vai para casa, escreve uma carta:

"saiam da minha casa, pedido meu
escrevo porque não posso falar
arranjem um lugar para chamar de seu

Edgar"

ninguém entendeu o disparate, mas decidiram todos sair, os filhos levaram netos e noras, dona gumercinda foi morar com o mais velho, a casa era toda de edgar, que dia 15 de agosto faleceu no prazer solitário de um cinto preso à porta do paraíso.

curriculum vitæ*

(*do latim: "trajetória de vida)

______________________________________________
DADOS

nome completo, não dou,
dou primeiro nome, que é como gosto de ser chamado
se calhar atendo por apelido -- grosseiro ou carinhoso.

meu endereço é o universo, amanhã pode ser
um labirinto na minha cabeça,
pode ser que caiba explicar
que fui jogado para os vermes,
quando enfim o fim for enfim.

minha idade, de vida
hoje 23,
mas daqui para as 17 h meu humor será de 80,
caso não me deixem sair daqui,
caso surja algo que me leve até as 21 h
mas meu cerébro funciona como se eu tivesse 16
e às vezes a solidão me põe no vácuo temporal
de um solteirão aos 30.
____________________________________________
IDIOMAS

sei falar a língua das árvores,
calmo balançar com a adaptabilidade
das redes onde  fui acostumado a lhes imitar
seus meneios de braço e ciciar de folha-na-folha.

já fui mestre do tatibitati, aliás,
no paraíso dos gatos não ouso pisar
pela vez em que corroborei com um crime
e arrependi-me, porém, a justiça felina é cruel,
olho por olho, dente por dente.

e a língua dos bebês, que quando choram
saibam que nada é tudo e tudo é nada,
dentro de seus pequenos universos extraterrestres
onde até ali, mesmo longe de seus reinos
(por alguns anos) ainda são reis,
para que logo após depostos, virarem escravos.
_______________________________________________
EXPERIÊNCIAS

já trabalhei em horários diversos,
velei o sono de todos os meus amores
fiz ascender a alma até o universo
o maior arquiteto de todos os sonhadores

do sol consegui a iluminação ideal 
para das luas refletir as ruas e fazer carrosséis;
com o néon fiz da cruz o primeiro sinal
da galáxia fiz um troféu: saturno e seus anéis.

inventei a roda da minha própria fortuna
deslizei então pelos vales do infortúnio
apenas para testar se era oportuna
a invenção mais falha para este mundo

e como se não bastasse inventor,
desenhei poemas por quinze anos
evitando rimar amor com dor
mas veja só a que rima chegamos.

fui pairmão por alguns filhos e filhas,
amante regular com tendência a marido
mas de tanto navegar, mais de mil milhas
acabei por satisfeito como desaparecido.

mas que me fio em ser verdadeiro
e em verdade te prometo, te juro
que vou sendo chamado por cada janeiro
e no fim, em dezembro, esconjuro.

calei a boca do universo, quando homem
o que eu disse ainda ecoa profundo
vocês chamam de infinito, mas tem nome:
o silêncio é meu grito pelo tudo.

_______________________________________________
OBJETIVOS

junto a vocês, nada acrescento
além da novidade última
que tiver que surgir.
entenda que meus feitos
nunca me fizeram nada além
do que lamento
mas o que há por vir?

teria no cheiro de mofo
de minhas roupas encharcadas
da última chuva
algum ser vivente
mais propício ao nada que eu?
que vocês?
que essa vida inteira?

qual o sentido da pergunta,
da carreira
da vida
que ligeira passa
e conforme os anos vem
nós vamos
e os fantasmas de quintana
quintanam
como as pedras de drummond
estão no caminho
e o eco de bandeira
faz cem anos que repete:
 trinta e três, trinta e três, trinta e três...

eu quero ser o objeto
que se torna filho
que se torna mimo
que se torna afã de se ser,
eu quero ser pó da madeira,
o bicho que apodrece a fruta,
o vento que bate as portas.

eu já fui a criança, menino, rapaz, homem,
quero ser velho, quero ser velho de fato,
da carranca e dos netos,
quero ser plantado na terra,
queimado no fogo,
congelado nas águas glaciais
desfeito no ar,
vira partícula subatômica,
sumir no buraco negro,
inexistir
por já ter
existido demais.

a fortuna da carteira

um assaltante me pediu a carteira e respondi que não ando de carteira.

juro por deus, não ando de carteira. 

mas, veja: objeto mais íntimo não há. mais íntimo que o celular que entreguei de bom grado, com todas as fotografias, rascunhos de futuros versinhos, minha agenda telefônica -- sou péssimo em relembrar números.

mas raciocinei porque não uso carteira, e descobri que é que por ela, me resumo:

abro: cartão de crédito desativado, cartão de débito de contas canceladas, documentos inúteis, um dólar que trouxesse, ansiei, fartura -- não funcionou -- e fotografias.

eu com a máscara do batman.
minha mãe.
meus irmãos.
você (sim).

eu não gosto de abrir essa carteira. lembra que lembro que tenho saudades.

domingo, 31 de maio de 2015

quando for saudade

quando eu for saudade as coisas vão ser mais fáceis.
não terei a obrigação de estar, nem de ser.
não farei mais planos de surgir do nada,
de falar qualquer coisa que te sugue a tristeza
ou de ainda desmanchar os descasos que criamos
apenas para nos dizer que tudo é imperfeição.

quando eu for saudade a tua mente vai deixar ir
todas as palavras mal-ditas e quem sabe até
ver em cada uma delas uma veemência de sanidade
ou mesmo ser lembrado como alguém ou algo
que nem sempre era agrado, era desequilíbrio,
alguém que chegasse e desmanchasse as coisas
para participar somente da reconstrução.

quando eu for saudade, ah, terão fotografias,
terão cartas, poemas, e-mails, gravações, camisas,
filmes, frases, citações, a marca do cigarro favorita,
músicas, textos, lugares, bebidas e perfumes,
que na rua, na casa, na vida, serão avenida
que cruzará a rua que terá meu nome, meu sobrenome.

quando eu for saudade a saudade há-de ser verdadeira,
que era de ontem, anteontem, mas, coisa passageira,
quando a saudade se fizer presente e meu corpo ausente,
minhas saudades de ser saudades serão tão nítidas,
que quem sabe eu cumpra a promessa outrora dita
de puxar teu pé à meia-noite ou até fazer cosquinha.

quando eu for saudade a presença será de espírito,
mas não desses que se dizem espírito, ou demônio,
será provavelmente a história que eu sempre repito
e a verdade é que sei bem que a verdade é que hoje ainda
me veio saudade de te ver, que vem quando puxo a carteira
daí teu retrato me lembra que saudade é fidelidade
do que agora é eterno mas surgiu como coisa passageira.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

laços de sangue

minha mente tem corrompido o tempo
as melhores influências do armistício 
onde fiz o escudo, brasão
de minhas linhagens mais antigas,
sem, contudo, sentir-me compelido
em deixar de odiá-los, pelo que são
pelo que sou e serei --

antes que seja digno, sede rude,
antes de ser rude, sede lúgubre,
vil, mas, acima de tudo,
detenha em seu tempo a influência paterna
deixando assim expor, que amanhã,
quando a terra, por fim,
enterrar seu mais findo ancestral,
renasça por força o orgulho herdado
os restos de nada,

mas me lembre: do sangue neerlandês,
misturado ao sangue ibérico, o tupi, o escravo,
sede o que é -- e o que sou?

apenas queria perecer de nenhuma influência
do que faz odiável o pesar do banzo
por todas as coisas que dão saudade
de tudo o que se viu e viveu -- 
ou o que se suponha possível.

deixai assim, que meu sangue se dissipe do vosso sangue
que minhas digitais, porventura, porosas,
se esmaeçam pelo uso contínuo do cloro,
e que meu ouro ou orgulho seja a busca desarraigada
de outro eu, outras faces, outros deuses,
outra coisa que não seja o passado
que sou obrigado a endemoninhar e santificar

quem falou em escolha própria, não teve sã ascendencia
ou sequer provou do gosto acre das saudades que não saciam

mesmo que eu assim fosse castigado a viver 100 anos
de perpétuo ódio, atravessando quaisquer mundos
e sonhos.

deixai também que meu ódio tome tento,
que vire raiva, que vire mágoa, que vire amálgama,
que seja memória, e que, no fim, seja nada.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

corpo de baile

o corpo se transforma n'algo antes nunca visto
o corpo se mistura com as formas que,
antes da meia-noite a surpresa é o agrado
destes olhos que chamamos aurora pelas cinco
o corpo é uma casa que desforme se reforma
mas o corpo não incorpora suas cópias
dentro de si, o o corpo se acomoda calmamente
a coisa que se coisa e é coisada por estar no cois da calça
é jogo, trava-língua, trava a lingua e se engasga
o corpo é perfeito dentro de suas imperfeições
gordomagrobaixoaltoamarelopretopardo
o corpo não precisa ser classificado
a pele que o corpo se fundiu para cobrir o ossos
cansados de carregarem o peso do mundo
os músculos enrijecidos, os músculos de hércules
o corpo absurdo dentro da pele de homem,
todo homem é deus? todo deus se santifica?
ou o deus se humaniza e se corporifica?
o corpo metamorfo que antes era bebê
hoje é adulto amanhã é decrépito ou coisa assim
mas o corpo em conserva, corpvs est in latim,
vitruviano perfeito em medidas exatas,
o corpo se desfaz em desvelos e se refaz em camadas
o ódio cego dos pais, das mães, irmãos
um corpo morto foi encontrado no chão.
se era marido, filho, pai, o corpo não diz, o corpo só jaz.
o corpo era pra ser resposta, mas na verdade é pergunta
e essa pergunta não tem nexo ou senso
o corpo largado na avenida, o corpo torto, errado
este corpo precisa ser incinerado
e o corpo vira cinza, antes de ser fumaça
polui a cidade, impregna nas casas
o corpo de carbono se regozija de ser fato
mas o corpo afinal era feto, afeto desfeito.

sábado, 9 de maio de 2015

tudonada

todos os dias eu acordo com a sensação
de ter perdido o encontro ou a perca da perdição
que eu nunca tive de estar com nada
e de em tudo ter que tudo exagerar para ser simples
mas no final das contas o saldo é zero vezes zero
e o infinito é pouco pro que se defronta em meus bolsos
mas o perdido é achado e o infeliz é que apesar de tudo
ainda continuo extasiado por estar preso na liberdade
que me foi praguejada, castigo com flor e beijo
que eu não precisei dar, mas também não neguei
apesar da boca que me disse beija não ter língua
e por não ter língua não ter voz, e por não ter voz
o silêncio ter dito tanto em tão pouco tempo --
o infinito é pouco pro nada, o nada é tudo,
ausência de tudo é nada, noves fora, qualquer coisa
e a matemática é ciência exata às inexatidões de fatos
que são inventados para nos aprisionar naquela escolha
que era liberdade -- meus braços são os seus,
mas você não usaria para me abraçar
porque eu não me abraço e portanto, eu não te abraço,
minhas pernas são as tuas, e se eu não caminho pra frente,
para trás também não vai, e na minha cabeça você atolou
e deixou inerte os sentidos em movimento,
se eu não vou até você, minhas pernas sendo tuas,
como poderei me encontrar se foi em ti que me refiz,
e pra que lutar se a conta a se pagar não tem preço,
e não há paz nessa guerra que só precisou de paz pra se ser,
o resto é inteiro e é indivisível, infragmentável.
só precisava de uma palavra pra descrever a história do universo:
esse tudonada que nos fundiu pelo resto da história.

domingo, 26 de abril de 2015

fragmento II

Teve aquela vez em que corri desbaratado atrás do ônibus, mesmo sem ter tomado café da manhã naquele dia, indo pro trabalho; o ônibus daria a volta dali a dois quarteirões, se eu corresse pela rua paralela ainda conseguiria ver quem desceria, se tinha sido coisa da minha cabeça ou da fome, ou da pressa de não me atrasar para o trabalho, mas, visto que se fosse você, e se fosse você, eu não me importaria de chegar atrasado, meia hora, uma hora, faltar o trabalho só pra tentar fazer alguma coisa que ainda não sabia o que era, e era tudo o que era necessário, corri, cheguei a tempo, o ônibus ainda estava parando, abriu suas portas, se era você, nunca soube, só se saltou do ônibus, só se esperou que eu sumisse, numa suposição de que tivesse me visto, e era, sim, o ônibus que eu costumava esperar antes você descer, a gente ia andando, descia nas ruas imundas do centro, o cheiro de óleo velho de batatas fritas, o córrego onde passava aquela lama imunda de águas que vinham sabe lá deus de onde, vagabundos misturados no meio de trabalhadores do dia-a-dia, de gente que a gente não poderia jugar, mas íamos juntos até a biblioteca, discutíamos o quanto era difícil, o quanto era insuportável viver, o quanto isso era, de certa forma, bonito, eu costumava citar aquela epígrafe do livro do Saramago, dO Homem Duplicado, “o caos é uma ordem por decifrar”, do fictício Livro dos Contrários, e era nesse caos que a gente se encontrava, ou pelo menos eu achava que era sim, hoje em dia eu vejo que o caos é um movimento contínuo, de aqui e lá, instante, e como desmistifica-lo ao todo, é saber que a desordem é a ordem única, desordenar-se é o único meio de viver em meio ao caos.

Minha cabeça hoje está assim, porém, sozinho dessa vez, e eu sabia apenas que deveria um dia começar a falar de você, mas não sabia como, e desordenado, comecei, como desordenei-me desde o dia em que resolvi dar fim ao que tínhamos.


Não sei de certeza se isso é uma história de amor, de loucura, uma biografia, uma biografia da minha insanidade, um panorama social no qual fui me inserindo pouco a pouco, ou. Ou qualquer coisa. 

Apenas que desde aquele dia, as coisas parecem nunca mais se encaixar, e, bem ou mal, a vida segue, e esse é o ridículo do amor: ninguém morre de amor, saudade, as pessoas simplesmente vivem as suas vidas, conhecem outras, tentam afogar no poço úmido de suas profundezas e intensidades líquidas as expectativas do que até ali foi amor de verdade. 

Se foi ou não, como eu posso saber?, apenas dá-se de sentir quando penso nos melhores dias da minha vida – em seu tempo, a gente lembra, a vida parecia um quarto desmoronando, as nossas cabeças entupidas de intenção, de vontade, e éramos tão jovens, a vida não era boa, mas tínhamos nossas pernas e braços juntos e juntos parecia que valia a pena, embora as brigas, embora uma série de coisas... e me desculpe, mas eu precisava falar de você, deixar que meu peito pudesse derramar um pouco do que guardo há dez anos.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

mestre

tendo em mim a inércia,
qualquer valor que seja dado
em mais de mil ou um apenas,
contribui de forma satisfatória
para o progresso daquilo que nos faz fortes

mesmo o silêncio projetado
para desdizer o não-dito e o subtendido
afogo-me nos preceitos antigos
onde sempre se é necessário explicar os pormenores e as vírgulas
utilizadas para satisfazer seus ouvidos
(apesar que nenhum dos ouvidos está apto para ouvir)
só se sabe o peso dessa apatia
quando se vê de perto a dor inteira
não a metade do pé pra lá.

o passado faz completo sentido
os gritos, os silêncios, as palavras todas.
como podem todos meus mestres estarem certos?
não é possível que se erre tanto
esperamos que o previsível não nos surpreenda mais
porém
a cada novo olhar revirado por trás das pálpebras
se apercebe o erro cultivado de anos
e como fazer o inesperado
se o sentimento de agora é coberto de uma vontade de enterrar o corpo debaixo
de sete palmos de areia grossa.
degradar lento o corpo
a mente intacta
o corpo são
a mente desgastada
e o contrário em dias pares.

deus me ajude a nunca mais enlouquecer.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

evolucionar-se

de tanto procurar o sensato
o sensível se perde e dá lugar
ao sem tato, o homem sem olhos
o homem sem senso,
o homem sem sono,

que é admirável pelo que se admira:
racionalizar a pedra imóvel
o prédio de linhas retas
a curva que se faz na folha

o intrínseco analítico,
fábula contada há mil anos
era de que o homem seria senhor
de si mesmo

mas as páginas que se mostram agora
confundem as vistas de quem proclamou
essa independência

pois que é escravidão do que se há-de ser
perfeito.

como que deuses fossem assim perfeitos?
escravos do vício de se viciar
no medo de se ter medo,
na cova de se ter que cavar uma,
mortalidade absoluta de ser mortal,

a sensibilidade morre para que nasça o homem-parafuso
o homem-engrenagem, o homem-hermético.

desomenagem de amor à fortaleza (ou canto do desgarrado)

So the boring collect
I mean all disrespect
In the neighborhood bars
I'd once dreamt I would drink
[...] New York, I love you
but you bring me down
LCD Soundsystem - "NY I love you but you bring me down"

"[...] Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins pousada
Na brancura de místicos altares.
[...]
É minha terra! A terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais!"
Fco. de Paula Nei - "Soneto"



Fortaleza i love you but you bring me down
odeio teu sol
tuas praias
teu cheiro de litoral
fortaleza i love you
but you bring me down

odeio teu centro
tua ignorância
tua inconstância
impossibilidade
tua desigualdade gritante
oligarquia patriarcal
fortaleza i love you
but you bring me down

mas também te sou grato
pela raiva e pelas pessoas
que em coro cantam comigo
no mesmo tom o mesmo hino
fortaleza i love you
but you bring me down

sou grato por ter me formado
moreno pardo mulato
meu corpo de fato
desta cor tamanho peso e fardo
a inspiração tal
fortaleza i love you
but you bring me down

deu também, fortaleza, 
esse jeito de amar te odiando
de cheirar teu lixo
e do ódio frio
o morno encanto me fio
fortaleza i love you
but you bring me down

quando canto agora
na madrugada afora
adolescência em vão
nas ruas podres e encharcadas do dragão
ou na aldeota, uivando com vinho feito cão
na favela onde conheci 300 ou mil irmãos
que me tomaram paraíso inferno
ou o que me fez tão mal
é assim que digo
i love you 
but you bring me down

da iracema outrora américa
o perdido anagrama
com quantas mortes
hei de fazer esse canto drama
pois que na luz esverdeada
das lagoas
há mais que tristeza e melancolia
do que se fez antes tua ama
quem te criou
te deu comer
e belle-epoque
o verdadeiro sentimento
de perdido íntimo
de quem das tuas ruas se fez caos
fortaleza i love you
but you bring me down

teu aniversário
mais 1 ano
e meu ódio é sem culpa
é amor natural
não irei mais ecoar
o que já martelei
da cidade que me fez
dar este verso final.