quinta-feira, 24 de outubro de 2013

ruas

tinha seus olhos postos dentro da jaula de uma janela de escombros derrubados por sobre a calçada esquecida de nossa rua; vivíamos então enjaulados como bichos. no dia em que encontramos a liberdade, veio com tal força que parecia mentira; nessa mentira conseguimos buscar uma sanidade uma parte do meu calar de agora é essa mentira. talvez nunca saiba o que vai por dentro daqueles dias em que passei assaltando as farmácias do centro da cidade, dormindo na rua e cheirando cola. hoje eu fumo, bebo e brigo, homem, empunho nas mãos um revólver, pau de fogo, extensão minha. é meu dever proteger o sangue que corre por outras veias e vias e fazê-los públicos nunca privados da liberdade de correrem pelas vias da cidade, as vias de fato -- mais que mais do infinito que a gente não sabe contar.

tinha seus olhos infernizando minhas coxas e não consegui conter o demônio na minha pele. tomei da sua língua amarga e o cheiro de vinho barato que fedia de dentro da sua garganta e do meio de suas pernas; mas ela era mãe e pai, era irmã e amante, mulher da vida, da vida toda, da vida inteira. mulher para se ter aqui. ela metia em mim o medo que eu nunca tive de viver: deus, por que o amor é a fatalidade que se segue no mundo? a linha que aperta o pescoço das nossas crianças a corrente que segura o punho e a gravata que afrouxa no pescoço -- como a corda que estrangula, os dedos que a apertam; é pelo amor que nos fazemos homens, e por ele nos matamos como cachorros esquecidos nas ruas e a merda que a gente come apenas para não morrer de fome assim é que nos encontramos nas ruas.

tinha esses olhos aí, e no meio deles uma bala só.

eap

domingo, 13 de outubro de 2013

ensaio sobre sagitário

meus pés querem galgar o infinito, o infinito sem nome das vozes que recorrem à memória outrora esquecida, na verdade meus pés não têm sentido em permanecer na estrada: voo, e é assim que assanho os cabelos e destilo minha liberdade, meus três sentidos d'alma, meus poucos reflexos; já se foram a faísca, o fogo, me resta a brasa, que ainda tem força para queimar, para ser, para ter. mas não quero ter, quero ser, e nisso de procurar, não crio raízes, saio do chão, galgo com as pontas dos dedos, qualquer coisa que me faça sentir prazer de não ter sempre nos olhos este mesmo céu que teima em ser azul, em ser infinitamente azul, indefinida, sórdida, maléfica, doloridamente azul. meus olhos creem, meu corpo sabe, minha mente tosta as ideias que por enquanto tento não mostrar, mas minha língua é pontuda e ferina, qual lança envenenada, e hei de dizer-te, de falar-te, de jogar um balde de verdades na sua cara, seja que cheiro ou espessura e viscosidade estejam contidas em tuas verdades; não negue nada aos meus olhos e ouvidos, não hei de escutar, segura minha mão apenas se for para ir comigo, nunca para ficar, porquê eu não fico, não olho para trás, não vou lá nem para pegar impulso, nem para ver o destroço do elefante que entrou na lojinha de artefatos de porcelana e resolveu sair assustado; não olharei, não atinarei, mas se quiser vir comigo, te estendo a mão, um pouco do meu coração, e a gente pode, quem sabe, saber da alma um do outro, e falar de como foi bom noutras línguas.

eap

39

para: mãe, que não sabe,
mas os versos de antes, de agora
e os de depois são meio seus. 

hoje você dorme com o cheiro da lua. não acho que seja em vão que teu aniversário seja assim no dia das crianças; eu sempre pareci muito mais velho e ranzinza que você, você mesma me pedia conselhos, no alto de minhas faculdades mentais -- ainda hoje pergunta qual melhor roupa, melhor cor, se está bonita. se está bonita?, ora, você é a mulher mais bonita do mundo, a mulher na qual, segundo freud, foi buscar enlaces de traços seus, de destroços seus, mais que eu tenha negado, ou tente negar, tem algo de ideal no teu jeito -- mesmo que vez por outra os astros me digam que cê me deixaria um pouco irritadiço, e deixa, é algo assim que há na perfeição. mas não seja assim, seja mais, se é possível; do teu lado desde sempre, embora já tenha dito dos arrependimentos de existir, hoje me arrependo, acredite. em dias que sim, tem dias que não. mas sinto saudades suas, dos abraços que nunca demos, e que hoje recobro, exagerado, toda aquela gana de te encher de beijos, seja que dia, que hora for, fumarmos juntos, sem temer hoje, conversar, rir, saber desses teus novos amores, desses que sabem que é fácil cair de encantos pelo teu jeito, difícil é te ter, escorregadia (culpa minha). não direi, não direi nada, mas se era difícil dizer antes, agora soa fácil, esse afeto, amoleço-te, cê sabe disso, mas quero-te firme, porque a vida é dura contigo, conosco, mas a gente sabe como driblar ela nos sábados à noite, rindo dessa vida besta que a gente teima em levar. viva mais, muito mais. hoje cê dorme com o cheiro da lua, mas cê sempre me acolheu a noite como tal. cê é a própria lua.

eap

visões (i, ii e iii)

Arnold Schönberg, The Red Gaze, 1910
(Städtische Galerie im Lenbachhaus, Munich).


i

ver que não há
ver que não é
ver que é vão
ver que é tão
ver que se vê
(rear-view mirror)
no que não ter
de todas as vozes
deixadas -- atrozes --
atores, astros,
marte, eros, vênus,
procura, sem fixo
procura sem ter tido
razão,
procura sentido.

ii

ver que se é
sempre se der

e dar-se um pouco mais
ou um pouco menos
aos menores (baixos
baixios, bastardos
cuspidos)
maiores e mais bonitos
sentimentos do mundo.

iii

ver que não sei
ver que não sou
ver que não hei-de
ver que não posso
ver que sou poço
de saudades
de tudo no mundo.
mas nada me impede
de seguir.

de ser
de ir.

seja lá
o que/
pra onde
f(l)or.

eap

esquece, carlos

fui bater na sua porta, mas não sabia onde você moraria -- então bati em todas as portas da cidade, só sabia, decorrida uma semana, onde você não estava. 

já de punhos inchados de tanto bater portas, passei a gritar teu nome nas ruas -- essa cidade é tão grande meu deus, é tanta rua, tanta avenida, tanta viela, tanta gente -- - algumas disseram ter te visto passar, de viés, em algum lugar, que eu não sabia onde era, semana passada você estava lá, hoje, não sei mais, fui seguindo os detalhezinhos que cê ia deixando, um resquício de perfume que ficava no ar, no meio da multidão -- naquela biblioteca te esperei passar, entre os livros das prosas e poesias das quais fui me identificando e tentando encontrar, quem sabe, outro resquício teu, nosso, segui mais uma vez o destino desconhecido, coisa alguma, coisa alguma falta sentido gratuito pesqueiro memorial interno selvagem monstro de solidão absoluta. 

não procurei atinar do sentido (perdi minha voz); dei apenas de caminhar por aí, com o coração chagado, aberto, nas avenidas, "onde anda você?", mas não sabia mais dos sentidos dessas palavras, não sabia mais do que ser. no momento eu lia e relia os versos que você não me fez, mas que ficaram memorizados no meio do caminho, misto de olhar e mãos. 

ontem acordei na rua, tua letra num papel dizia "esqueça", foi então que fui para casa, fiz a barba e tomei um banho.

eap