sábado, 21 de janeiro de 2012

Mersault


“Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver.”

Albert Camus – O Estrangeiro

*

[...] Whichever I choose
It amounts to the same

Absolutely Nothing [...]

The Cure – “Killing an Arab”

Fazem dois anos. Exatamente dois anos que volvi da França, e ainda tento entender porque o fiz. Voltar para este sol que assola a humanidade, tosta os miolos facilmente, e quem dera, eu pudesse jogar uma ducha sobre o sol com a mangueira com a qual aguo meu jardim. As lembranças me veem vez por outra como lampejo, o turco ali no chão, e eu me sentindo um deus, sem saber por que. A minha cabeça solta uma gargalhada frouxa e quase exteriorizo. Um remédio, gole d’água, sôfrega garganta.
Uns barulhentos vizinhos me chegaram a alguns dias. Tenho lá meus quarenta e poucos anos, mas tenho minhas leituras. Foi por elas que vim da França. Foi por causa delas que o Mojav deitou a boca ao chão, todo cheio de morte, todo cheio de nada. Por que? E eu não lembro. Talvez eu não queira lembrar. Fazia um tempo que procurava conformidade por ter abandonado meus estudos na França, a estudar o existencialismo. Sartre invadia minha cabeça, etc., assim como Camus – e como Camus eu me sentia. Principalmente... E minha cabeça não parece me obedecer.
Eles começam. Na verdade é um garoto de quinze anos. Ele tem um cabelo desgrenhado, branco como alma, delineador nos olhos, maquiagem, preto de tudo, como um defunto, como um morto-vivo. Vi-o uma vez, e agora entendo o porque, já que eles começam a tocar suas guitarras. Uma banda de pós-punk, góticos, new wave. Meus dedos calejados de tanto metralhar a máquina de datilografar, e logo após o computador, também já deslizaram pelas cordas de uma guitarra. Tocava punk-rock, os Sex Pistols, os Ramones... Minha política era a principal razão pela qual eu adorava o que fazia. E por isso fui à França. Tudo começou daí. Algumas autoridades disseram para o meu pai algo assim:
– Ou seu filho vai embora ou ele acabará sendo pego pelas autoridades, e meu pai, como só tinha a mim de filho, viu que não poderia me mudar por isso me mandou para a Europa, e no fim tomei jeito, e me abracei com o Velho Mundo. Lá teve aquela onda do pós-punk, o que deu em Joy Division, que era o básico três acordes, mas que com algo de poesia. Lá o Ian Curtis deixou algo, mas eu fui além, e passei temporada na Inglaterra, e vi muita gente boa se apresentar por lá... Vi o Cure, e num estalo reconheci o que tocavam os moleques da casa ao lado: In Between Days, aquela música, me lembrava duma espanhola com quem troquei bem mais que carícias num beco de Londres. Ela sabia bem o que fazer e o fez com tal maestria que nunca a esqueci. Então eu voltei para a França com ela, e o resto, foi história, foi a merda que deu. Eu queria ter permanecido naquele beco por uma eternidade, ter vivido duas vezes a minha vida inteira para estar ali, comendo aquela espanholinha, que me abraçava e me chamava mi amor, mi amor.
Meu pai apenas me deu um revólver, e me disse que andasse com ele para onde quer que eu fosse. Na época eu não entendi bem.
Mas a faculdade, quem pagava era meu pai, e aí, tive que voltar. Do pós-punk pude levar apenas o anarquismo, e dentro do curso de Filosofia existia uma rixa entre visões políticas, principalmente no que se dizia ao Existencialismo, e o racha ocorreu de forma que dum lado ficarão os comunistas seguidores de Sartre, que ainda dava suspiros à época – mesmo depois de morto no começo dos anos oitenta – e os defensores do Anarquismo Metafísico, de Camus, morto a mais de vinte anos. Sabia que ambos escreveram além de tudo, ensaios e obras de ficção. Sartre agradou-me, mas quando bati os olhos em Camus, vi que era aquilo que queria. Anarquia a liberdade individual, e comecei a ler um dia O Estrangeiro, sua obra mais famosa, onde o entrelaçar de absurdo estava no fato de um indivíduo poder ser livre – o que fazia disto uma crueldade com a alma do indivíduo.
Não gostava do rumo de meus pensamentos. Dois comprimidos, um gole d’água. Sono profundo. Eu não acreditava no que acabava de fazer. Eram duas da tarde, a música do Cure prosseguia, entremeando com sucessos de outras bandas, como o Gang of Four com “At Home He’s a Tourist”, Echo and the Bunnymen com “Killing Moon”, Killing Joke com “Eighties” (que o Nirvana copiou desavergonhadamente em “Come as You Are”), Bauhaus, entre outras coisas... Sob aquela atmosfera de pesadelo negro, adormeci.

***

– Tu achas mesmo que já consegue tocar esta porra?
– Só se sabe tentando, e sob estas vozes, a partir daí, foi que acordei assombrado com a letra daquela música. O moleque entremeava a guitarra com sujeira e raiva, como nunca o Cure poderia ter tocado. Quem escuta “Boys Don’t Cry” jamais iria se acostumar com a assombrosa melancolia dos seus primeiros álbuns que contém canções como, por exemplo, “A Forest”, e esta que dedilha lamentosamente o guitarrista, “Killing an Arab”. A música não prossegue adiante, e, o que é pior, eles recomeçam como se não soubessem como ir adiante. Desperto dum susto repentino e vou até a sala, onde ponho o ouvido à parede e escuto eles começarem duas, três, quatro, um número infindável de vezes, que atormentam a minha cabeça.
– Porra, larga mão dessa merda, tu não vai conseguir...
– Claro que vou.
E recomeçava. E recomeçava mais uma vez.
Olhei as horas: sete da noite. É geralmente nesta hora que a banda para de ensaiar e partem cada um para suas casas. E é o que acontece. Minha esposa vem da cozinha com uma xícara de café, que sorvo com sofreguidão, e ela percebe.
– Tá tudo bem, meu amor?
– Tá, tá tudo bem sim...
Mas a música persistiu na minha cabeça. E, como não bastasse a culpa diária, ela inflamava e criava pus, enquanto eu tentava retirar da cabeça a canção, que parecia completar a letra, sozinha, automaticamente.
A banda enfim vai embora. E jogo dois comprimidos na boca. Minha esposa percebe. Nenhum copo d’água. Seco, engulo, adormeço, como uma pedra.
Acordo às duas e quinze da madrugada e escuto cortar o silêncio o violão do rapaz, que se contorce para acertar as notas de “Killing an Arab”. E, não vai adiante, como era de se esperar – como para acabar com o meu sossego. Minha esposa desperta e olha para mim, em estado de pânico, sugando alguma coisa, talvez catarro ou lágrima, e ela então se põe sobre mim, e me abraça enquanto o violão começa e não termina os acordes iniciais da música.
Me envolve num abraço quente, beija meu pescoço, eu fecho os olhos, ela apalpa meu corpo, eu o dela, e a música segue um ritmo cadenciado e lento. A liberdade é este estado de demência? Ou seria a falta desta liberdade que me causasse esta demência? Minha cabeça tentava raciocinar, enquanto minha esposa descobria seu colo nu, e em seguido seus peitos, rijos, a balançar, enquanto ela estava sobre mim e a música seguia a letra ritmada à voz do garoto que gaguejava qualquer palavra enquanto me engasgava com a minha saliva, de nervosismo, e misto dum prazer cego. A voz do garoto assume postura, ganha o seu quarto, invade a minha casa, minha cabeça, enquanto repete, triunfante:

“I’m alive
I’m dead
I’m the stranger
Killing an arab”

Minha esposa vira-se num susto repentino, e eu gozo dentro dela mesmo assim. E ela pergunta que há comigo, e eu num grito esmurro a parede:
– Para de cantar a merda dessa música, seu filho da puta!
Sinto o dedo do garoto abafar as cordas do violão, e de repente minha esposa olha para mim sombria. Eu a observo, deitado e nu, enquanto ela se põe de pé e veste sua camisola e dorme virada para o outro lado. Fico estupefato, achando que talvez ela nunca vá entender o que aconteceu ali. Ela não sabe que matei um árabe, como Mersault um dia o fez nas páginas de um livro. Sentindo-se tão estrangeiro quanto ele, fui à uma livraria, onde um turco quis me cobrar os olhos da cara por um livro usado. Virei-lhe as costas, enquanto ele praguejou qualquer coisa, baixo. Não lembro bem o que pensei, não lembro bem o que aconteceu em minha cabeça, sei que peguei o revólver que meu pai havia me dado, e soube naquele instante que fazia algo que ia de encontro à lei, ou algo que se valha. O turco deu um pulo para trás e a arma disparou dois tiros no meio de seu peito. Ele voou para cima de uma pequena prateleira e caiu ali. Não corri, não hesitei em demonstrar qualquer reação.
Meu pai veio voando também. Mas do Brasil para me tirar da prisão. Meu passaporte fora tomado, e me tornei persona non grata em terras francesas.
No caminho da viagem de volta, meu pai cansou de perguntar:
– Por que, meu filho?, por que fizeste isto? A troco de quê?
Eu nunca soube responder ao certo.

*

– E aí, conseguiu aprender “Killing an Arab”, sujeito teimoso?
– Não, não... quando a coisa não tem de ser, é melhor deixar quieto... Mas eu tenho uma coisa melhor aqui que aprendi...
– O que é?
– Saca só, e começou a tocar os tons graves daquela canção obscura, que, ainda bem, não tinha nada a ver comigo. Era apenas mais uma canção de pós-punk, cheia de uma batida ecoada, e aquilo me agradava, para além dos delineadores e das maquiagens em branco. Acendo um cigarro e tento apreciar o sol, o céu, quem sabe agora não nos faltasse uma praia...

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...a esmo...


Tenho me ocupado de me desocupar da tarefa de escritor menor, poeta menor, literato menor.
Aprendi, por minhas próprias palavras, que existem pessoas que nascem para ler, outras para escrever – saliente-se aqui a sinonímia deste verbo com outro: criar.
Devo ter nascido para ler, apreciar.
Não digo mais que isso, posto que tudo me move para baixo – e pensando bem, tão melhor estar aqui, escondido ao canto da sombra do fundo do poço,
me alimentando das sobras de um peixinho fedorento, que além de tudo, me veio feio, lastimável, e sem perspectivas.
Pobre deste peixinho miserável!
Falo por ele, digo por ele que lamento, e por isso sobre ele não falarei mais,
posto que há na vida o fato do conformar-se, do deixar-se estar calado, sentado, quieto, à luz do trabalho braçal que alimentará teus entes.

Mínimas X - Sala Macho Alfa I


Um amigo tão vaidoso de si mesmo que não
poupava nem a sua vaidade de seus elogios.
Sei que em certa altura da conversa me disse,
– Nunca estive enganado na minha vida.
– ...
– Minto: Me enganei uma vez quando achei
que estivesse enganado.

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domingo, 15 de janeiro de 2012

Forrest Gump's Theory (Teoria Forrestegampeana)

Basicamente composto de cinco etapas:

1ª etapa: ao menor perigo, não pense: corra -- é provado que quem enfrenta sempre acaba ferido.
2ª etapa: não titubeie, obedeça.
3ª etapa: saiba que ser idiota é fazer idiotice.
4ª etapa: não tenha opiniões nem contrárias nem a favor de acontecimentos sociais - ficar em cima do muro é mais seguro.
5ª etapa: seja um idiota e tudo vai dar certo.

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Narciso

Narciso - Caravaggio
Procurava o poema
que simbolizaria --
ó, nebuloso desejo --
tudo o quanto queria.

Desisti,

pois que para mim
um poema, eu sabia,
só minha mão
criaria.

Narciso,

ao passo que se escrevesse
mais se afogaria
nos versos
[ah, face do impossível]
que novamente o tragaria.

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Noise

Houve dias em que eu procurei o caos - mas este chegou-se a mim,
não da maneira como eu esperava que ele viesse, mas veio calmo
sentou-se ao meu lado, começou a ronronar, tilintar, chiar e, final-
mente, começou a sussurrar - acabei por tê-lo amigo, por tê-lo co-
mo um ser de muita estima, essencial. Sua desordem me animava
e acalentava meu lugar fora do mundo - era tão melhor estar ali ao
seu lado, sabendo de suas cores, de suas ruas, de suas músicas,
seus nomes e trejeitos, coisas, enfim, que eu jamais atinei por en-
contrar neste mundo. Dei por mim caótico, com gritos abafados 
por uma mão invisível (na minha cabeça era demasiado estridente)
e quando de mais um dia ou dois, eu estava ressonando tranquilo
no meu quarto, conformado (nem feliz nem triste) com a vida que
continuava, enfim, e eu sentado, mexia o açúcar no café, sorria,
para quê, ainda não sei - que me importavam as coisas? O homem
sonhava ainda - e era este sonho que o fazia lutar por alguma coisa
e guerrear por tanto - apenas estava escrito em mim que qualquer
palavra dita deveria ser entendida, mesmo que non sense - todos
não conseguiam entender a guerra? todos não conseguiam entender
e lutar por suas causas (estúpidas, a maioria)? todos não tinham
seus deuses invisíveis? Então que tilinte, chie, ressoe, ecoe, quais-
quer palavras, sons e cores, que este Narciso que vos fala também
irá por fim fazê-lo.

eap

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sem nome nº 02

meu peito
calado --
sem verbo
nem recado --
sabe que
assim ficar
é estar
acovardado.

eap

Sem nome nº 13

cada segundo somado
(o tiquetaquear de relógio de cozinha)
vai a vida
sub-
traída.

eap

domingo, 8 de janeiro de 2012

"Cupid Come"

Talvez tenhamos que conversar,
sim, que conversar é bom,
melhor que o beijar -- salivar
na boca um do outro -- o gosto
palpitando na boca -- âmbar.

Sabeis vós que quer ar --
preza o nariz que não tem --
este peito a palpitar
e, morena, tua voz,
deixa em mim ressonar

o que da música sem par
temos mais que saber:
desse teu gosto pelo noir,
pelo caos frenético,
e de guitarras a desafinar

rompendo a aurora boreal
entre náuseas e cores-mil
havemos de distinguir -- cantar
esta voz ao fundo, tilintando --
ó doçura que se desfaz sem pecar...

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Festa de Família

Reunir-se-ão filhos, pais, netos, bisnetos e as ramificações adjacentes naquela festa cheia de rememorações à esmo – uns primos que numa mesa se refugiavam cheios de nostalgia, àqueles anos oitenta! Ah, aqueles anos oitenta! Quais almas não se enterneceriam só de olhar para trás, por cima dos ombros – olhe, eu queria tanto ter nascido lá, não vivido, nascido, veja bem, que para mim, os anos noventa, aquela bendita ressaca, hum..., aquela ressaca é que pareceria ser o lugar da juventude feliz, por mais contraditório que se seja.
Mas não. Nã-nã-nã-nã-nã-nã-nã-nã-nã-não. Quis alguém, além da idade já avançada, que a chuva de herdeiros do sobrenome fosse àquela época, e cresceram todos juntos.
Na verdade não estarei lá; mas vejo duas mesas bem distintas. A mesa de minhas tias a conversar, cada uma talvez receando, uh, dedos e dentes de rancor, é claro, pois as famílias guardam dessas coisas; entretanto, conversam, algumas ao copo da cerveja, outras não; uma apertada em seu vestido largo, ou ainda em seus jeans justíssimos, cintilantes cristais, outra em cores, outra em imitação de pele de onça – ali no cantinho, sorrindo de canto aquela tia viúva, sem muito em comum, constrangida pelo largo silêncio e ao seu pé o filho também em silêncio, que sai vez por outra para sentar-se à outra mesa, onde risadas explodem frenéticas sobre os casos de infância e adolescência, brincadeiras, brigas, que aqui e agora são tratadas com felicidade galhofeira, antes, ah, antes foram pau feio entre os primos, e ri, aquele mais tímido, sem no entanto nós sabermos que em sua cabeça vai meio enevoado o episódio, e àquela época fora ruim, sim.
Faço este parágrafo aqui para que o outro não se estenda, pois que não quero que nenhuns de vós percam nada do regozijo de minha alma em prever o futuro – e sei que em blogues um parágrafo mais longo faz diferença entre ir adiante ou fechar a página.
No mais, a mesa de primos e primas fala de Menudos, fala de Dominó, talvez entre aqui e ali um ídolo daquele tempo, talvez entre acolá um desenho, uma série, um filme, uma novela – ai, que novelas! Aí que surjam certos segredos que nem aqui serão revelados, mas, a certa altura em que saiam da infância para chegar à adolescência, em meio a risadinhas de escárnio, hum, aquele olhar desconfiado e singelo do segredo escondido, pois chega o marido, senta-se à mesa, dando um beijo no rosto daquela e a esposa vai ali cuidando do filho e pede ajuda com a bolsinha das fraudas – mas que lá fique, por favor, que certas coisas mudaram... Ora, vão-se aí sabe lá quantos anos!
E enfim os filhos, primos de segundo grau, que correm batem-se, esbarram em suas birras e más criações, nas suas vontades, nos seus mimalhos nojentos – como o são o de todas as crianças, entretanto umas mais que outras, já que, ai, lá vem o dinheiro que o pai não tivera outrora, e que, tanto tem agora, que acabará por implantar cabelos, que vão-se escasseando em sua fronte, mas não tanto, vá lá, vaidade dele e intromissão minha, mas a criança, essa sim... e, mais que esforcem todas elas, surge aquela confusão no fim da festa que faz uma mocinha chorar e explodir uma confusão monumental, mas não a ponto de fazer todos irem embora, porque sempre surgirá um que vai dizer assim,
– ora, senhores! Somos uma família! ao que todos vão se sentando, pondo suas crianças a dormir, e, à meia-noite talvez alguém diga que se vai, enquanto uns e outros mais nostálgicos permanecerão, à custa de raivas dos respectivos maridos e esposas, além da birra dos filhos. Lá pelas tantas, alguém dar-se-á conta da ausência de um ou outro, pegando-se a contar, no fim da festa quantos e quais primos vieram ou não vieram – é nessa hora que vão dizer,
– aquele lá é um esquisito! nem veio!
Mas ninguém se lembrará – ora, já daqui contarão com a minha ausência. Num outro dia vão se perguntar, e questionar, e embirrar, e dirão em uníssono que apregoo por aí a desunião como aquela qual e aquela tal.
Ora, eu estaria bêbado estivesse lá, falando mais que devo, não sendo engraçado como prezo e passando vexame pela minha eterna sensação de estrangeirismo – que nem em berço familiar se desfaz... É...
Por isso que já digo daqui para dezembro: Passar bem, muito bem, senhoras e senhores, não é difícil prever o óbvio!
eap

sábado, 7 de janeiro de 2012

O Parir Misterioso


Ora, sombreeis minha alegria
com a nuvem que passa
e não tenta, nem disfarça
que finda-a: abre as portas
à doce melancolia.

É então que vem a ventania
e não reclama da caça
essa coisa miúda e esparsa
que entrelinhas se consome
até o fim do dia

e cheia de dor, segura-se a que se fia,
e então, pobre bicho que arregaça
tinta da caneta do poeta em desgraça
sobre o despojo do sangue
é filho da arte - coisa vadia!

sem pai, nem mãe - parecesse pia,
não fosse seu adorno que se espaça
se envaidece e extravasa 
as linhas a que se prende
e me pergunto somente: 

que é de ti poesia?

eap

Uma questão de paz

"Que contradição
só a guerra faz
nosso amor em paz"

e digo mais:

que contradição
só a guerra traz
o amor à paz.

eap

Caim de José Saramago


Apesar de não ter passado pela coluna ali ao lado logo abaixo, li Caim, de José Saramago, e posso dizer que fora uma das mais interessantes incursões que fiz no gajo desde conheci-o – falo assim como tivesse a autoridade de ter lido toda a obra de Saramago [li apenas alguns (Ensaio Sobre A Lucidez, Ensaio Sobre A Cegueira, O Homem Duplicado, O Conto da Ilha Desconhecida, Objecto Quase, além deste)], entretanto, o que me faz querer um bem tão grande a este escritor em especial, o mais numeroso em minha estante, são as ideias que leva consigo e que consegue transpor para suas palavras. Uma dessas ideias, o ateísmo, é um dos pontos mais conhecidos, não apenas de suas obras, mas também de sua biografia, posto que poucas foram as pessoas que o defenderam como ele o fez, transformando-o num dos maiores defensores desta causa, e, para além da ideologia, escreveu um romance que foi o responsável pelo seu autoexílio nas Ilhas de Lanzarote e que também foi o responsável por um silêncio entre o Estado português que perdurou até quase sua morte, este livro foi O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que, pouco que li sobre, fala sobre uma desmistificação da Sagrada Família. Desde então permaneceu com seus romances alegóricos, como O Ensaio Sobre A Cegueira, entretanto em 2009, qual não foi nossa surpresa, que depois de um período de fragilidade de saúde, nos sai um romance que já é provocativo inclusive pelo título: Caim. Pondo aí que, indo por aí dos oitenta e tantos anos, Saramago não pensava nem objetava retroceder em seus pensamentos, arrepender-se e desfazer muitos anos. O destino, irrefutável, quis que esta fosse a sua última obra – o que se seguiu com Claraboia foi um livro que o autor escrevera nos idos da década de 60, e que fora negado pelas editoras, e que, a pedido do autor, permaneceria inédito até sua morte (na cronologia, seria seu segundo romance depois de Terra do Pecado), mas, Saramago é um nome tão popular e chamativo, que o livro hoje vai muito bem de vendas, obrigado, o que aconteceu com Caim, que permaneceu muito tempo entre os mais vendidos do Brasil quando lançado, e que provavelmente vá acontecer com o seu romance inacabado que prometeram já ser lançado em 2012.

James Tissot - "Caim
conduzindo Abel à
morte"
Passada a biografia absolutamente parcial do autor, vamos ao livro, que conta com pouco mais de cento e oitenta páginas, todas elas permeadas de um humor absolutamente incomum ao pouco que li de Saramago, que, costumeiramente tem um humor muito reservado, quando o tem, costuma ser negro, e uma linguagem austera; neste livro, entretanto, vemos um narrador que nos vai saindo absolutamente irônico e sarcástico do início ao fim, posto que sua temática e história nos pede que seja assim, e, este mesmo narrador, nos mostra o Velho Testamento desde o Gênesis, passando por Jó e indo até o Dilúvio, sempre com os comentários perniciosos do narrador que não hesita, na cena em que Isaac vai a ser sacrificado por seu pai, em chamar o deus vaidoso de filho da puta, conquanto o anjo que viria a salvar Isaac e avisar que estava provado que Abraão era temente a deus justifica o atraso responsabilizado algumas nuvens e que uma de suas asas estava com defeito (a pena da galhofa machadiana!). A história, obviamente, vai ao encontro do fantástico, mas vai guiada com mão firme, mesmo que a linearidade seja interrompida por sonhos que poderiam ser ou não partes da realidade vivida pelo protagonista Caim, que a cada vez que dorme acorda (ou sonha) estar numa parte diferente do Antigo Testamento.

Importante frisar a importância de passagens memoráveis como esta já citada e também outras, como o despropósito da aposta entre deus e o diabo sobre a fé de Jó, além das primeiras palavras, que habitavam ainda o Éden, a criação divina, que se juntam a introduções antológicas, tais como A Metamorfose, O Processo (ambos de Kafka) e O Estrangeiro de Albert Camus, onde o narrador nos confronta ao sentido semântico da frase lá posta, pouco conclusiva. No mais, ainda há o caso de Sodoma e Gomorra, as guerras santas travadas pelos Judeus, que mataram muitos inocentes em nome do senhor deus, e aqui, a narrativa parece assumir nas cabeças a voz do próprio Saramago, questionando até onde vai esta prova de fé – aqui um dos capítulos mais interessantes do livro.


Isto, sem falar no último capítulo que faz com que o livro seja arrematado com maestria – que não hei de revelar – que, aos niilistas poderia ser o seu sonho mais profundo, caso, e só caso, acreditassem em alguma coisa já dita. Como objeto de estudo à religião, suscita, com louvores, as dúvidas que quer, como literatura, é um Saramago puro-sangue, sujas as letras e vírgulas de seu pensamento mais profundo (para os católicos, profano) sobre o rumo que tomou a sociedade ocidental, que bem sabemos ser  orientada em parte pelo pensamento judaico-cristão, responsável, segundo seu autor, por parte dos problemas que são refletidos desde muito tempo na vida de todos. Caim é, enfim, o término perfeito para uma carreira bem sucedida como escritor, sem lastimar nenhuma hipocrisia, posto que Saramago fora honesto aos seus princípios desde Terra do Pecado, da década de 50 até este Caim, que prova não somente seu papel de escritor, mas também de cidadão pensante.

eap

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

nada

nada