domingo, 26 de janeiro de 2014

carnaval

quem foste tu no baile de máscaras que naquela noite frequentei? quase sempre tenho a impressão de ter dançado com corpos esquecidos de existir. mas lembro, assim, de relance, do teu, e eu que nunca fui dado a dois-pra-lá-dois-pra-cá, saí galante a segurar tua mão e tua cintura - o beijo único que roubei de ti, foi de um pescoço que, lento esticaste - o perfume se desprendia dele, indo até a ponta do infinito e voltando - no passinho de valsa doida, contei duas horas, e duas e quinze, ou dezesseis, saiu pelo mesmo buraco donde apareceu - agora fico doido a te procurar, única maneira que encontro é o cheiro do perfume que prendeu meu nariz em teu pescoço e quantos pescoços eu já beijei de lá pra cá... muitos deles até boca me ofereciam. mil confetes na língua e serpentina no cabelo. a gente ainda se esbarra, mas os pescoços, esses são muitos.

eap

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

10 às 4

as minhas mãos sabem de cor que caminho construir para chegar até minha casa - a pergunta é por que não vou?, porque não sinto prazer de caminha até o ponto de ônibus, abrir as portas descortinar a porta do quarto e dia seguinte olhar para todos aqueles rostos que mastigam e deixam cair farelos de pães pela mesa - cobram segurança financeira que devo, cobram dinheiro das contas, cobram. cobram e acham que nada devem. última vez que reconheceram que minhas melodias no violão estavam audíveis, quiçá bonitas - nunca se perguntaram onde estava aquele poema pelo qual ganhei aplausos e uma menção honrosa no concurso de poesia do clube de autores aqui; nunca reconheceram que minhas tintas não estão ali no quarto à toa. mas cobram a vida normal deles. não que a minha seja lá especial, mas em nada alimentam o que insistem em chamar de ausência de meu amor naquela mesa, naquela casa. não posso ter um amor obrigado - não posso conceber a ideia de família por obrigação - olho para o meu pai, sentado na cadeira, barrigudo, careca, dorme da hora que chega do trabalho, até a hora que acorda para trabalhar, espera, ansioso, pela aposentadoria, enquanto perde a visão, e rabugento cada dia mais vai ficando, mas sem perder a pose que tinha em seus tempos áureos de grande deflorador, o cara mais bonito do lado de cá da lagoiinha, hoje, grande jogador de paciência na frente do computador, o campeão mundial de pebolim, o recordista do caça palavras e dos jogos de sete erros da revista coquetel. minha mãe, vai no coro de meu pai: me cobra família, não sabe porquê gasto dinheiro com livros - a eles nem tanto, mas quando chega fim de semana, tios e tias, primos e primas, aquele sentimento de repúdio, olham de longe, perguntam familiaridades, perguntam tudo - saio da sala, vou para meu quarto, abro as janelas, acendo o cigarro, ponho os fones de ouvido, deixo uma guitarra, um sax, um sintetizador, ou seja lá o que for, invadir meus ouvidos, fazer com quem chegue logo a noite, que ponho o sapato, uma camiseta, ganho a rua, ganho o mundo, encontro qualquer um, faço a minha família, ao som de samba de orly, que me dão na mesa, brindamos o café da madrugada num copo de cachaça, pagam, sabem do que gosto, pagam meu cigarro, amam minha voz, Às vezes ficam dois, Às vezes ficam dez, às vezes eu e o garçom: a família das dez às quatro.

-

ix

não dou asas pra tristeza:
rapina, ela voa,
e me arranca a cabeça

eap

sábado, 11 de janeiro de 2014

copo dágua

me dê um copo dágua
me deixa nele afogar
fazer tempestade,
ressecar,
ser nele conservado
profundo, transparente
aquário - melhor ao sabiá
que na borda dele
tende a beber, e mordiscar
meu corpo inerte e inchado,
donde outras moscas
se puseram a morder
meus braços e pernas -
verdade que deixei,
até certo ponto dava razão
ao verme que dos buracos 
feitos e criados
entrava e saia.
semana que vem, o cheiro perturba
como fosse rato morto
na calçada.
daqui um mês, no mesmo copo
que outrora padecera meu corpo
ela mata a sede e engole.

eap

choro

caí no choro
e esse choro
era um precipício
de cordas alegres,
que me sacudiam
de alto a baixo.
achei que era samba
mas era soluço engasgado.

eap

a ideia vaga iii

a ideia não vaga mais
a ideia permeia, solidifica -
misto de liberdade solidão
solitude sofreguidão.
a ideia quer ser, não falar:
procura nas palmas das mãos
coisa de destino, coisa de fim;
reproduz-se por cima de si mesma
acalentando-se através de um desatino
amarrado em válvulas de escape
que jorram porra e sangue
pelas paredes, pela estrada deixada
para trás - ninguém refreia
a ideia refeita.

a ideia de unidade
a famigerada sorte dos astros
são nada além que um buraco
esticado no meio do peito
com as unhas sujas
de pontas pretas - não dói
como doera antes saber:
tem jeito de privilégio sacrilégio
sorrir a dente amarelado
dum desgaste que a vida faz,
a ideia amadurece,
e solidifica as bases 
do que um dia foi penso -
penso, logo existo,
penso logo pendo,
logo cedo, logo tarde,
logaritmos desproporcionais
para se calcular com exatidão
a matemática da vida.

mando um puta que pariu
no meio do nada,
apenas para saber que estamos aqui.

a ideia veio cedo,
não quis ir embora:
deixou marcada nas paredes
um gosto pelo absurdo
pelo fascínio das meias palavras,
das meias verdades,
do que agora é silêncio,
do que amanhã, ou nunca,
é um seja-lá-o-que-for.

a ideia não vaga mais,
porque se soube sábia em não ficar
não parar: a ideia vaga no seu próprio lugar.

eap

poema para s.b.

"Now there's a look in your eyes,
Like black holes in the sky."
Pink Floyd - Shine on you Crazy Diamond (Parts 1-5) [Gilmour, Waters]

"Lazing in the foggy dew
Sitting on a unicorn
No fair, you can't hear me
But I can you"
Pink Floyd - Flaming [Barrett]



quando revisito seus olhos
encontro uma verdade inata.
nenhum dos teus fios de cabelo
foi capaz de segurar teu juízo.
e eles eram muitos e tantos
e tão desgranhadamente lindos.
no fundo dos teus olhos
há coisas de se perder, de perdido,
e, olhando, indago "até onde
a busca de uma liberdade
pode acabar te aprisionando
dentro de si mesmo?"
veja só onde foi parar: voou
sem saber onde era bem-vindo
para um lugar secreto - 
perseguir um brilho doente
que sabia que existia na gota
que fritou teu cérebro.
mas leve o meu recado - lembre-se
de quando era jovem, 
de quando sua vida era
sem perder jamais o que nunca será.
às vezes nos perdemos
na busca de acharmos
algo que não existe - então,
aí a hora de voltar pra casa,
e tentar vestir as velhas roupas
do flautista que foste, um estranho,
uma lenda há muito esquecida.

eap