quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Quem é e de Onde Vem o Herói Brasileiro?

Ultimamente tenho observado um grande crescimento no interesse pela mídia de quadrinhos (a tal nona arte) e a culpa é um pouco do grande e lucrativo mercado de cinema que a Marvel e mais especificamente o Estúdio Marvel Comics, e mais especificamente ainda, a Disney, tem sobre o grande acervo de personagens da editora. A DC Comics segue a mesma medida, com disputas intermináveis para quem consegue chegar na casa do bilhão com os seus filmes -- em detrimento, às vezes de roteiros e artes lamentáveis dentro do mercado editorial que está passando por uma crise que, igual, só se viu nos anos 90.

Entretanto, passando um pouco a bola para o quadrinho nacional, muitas vezes, criança mesmo, quando comprava meus "gibis" da Turma da Mônica, me perguntava onde estavam os heróis brasileiros. Você tinha nos X-Men ali um Mancha Solar, mas, ainda assim, não era representativo suficiente. Era preciso protagonismo, era preciso um cenário local, era preciso mais um pouco para que um herói brasileiro, de fato, fosse algo que valesse a pena. Mas é complicado, e essa complicação só se tornou clara para mim depois de alguns anos lendo -- não histórias em quadrinhos, mas literatura.

Quando debruçamos sobre a história dos comics estadunidenses, vemos grandes alegorias. O Superman, criado na década de 30, por dois judeus representava essa síndrome do imigrante: o alienígena que vive entre nós e precisa se camuflar na sociedade enquanto luta contra inimigos. Ariano Suassuna costumava dizer que o Superman era uma versão ianque de Jesus Cristo, mas, vá lá, pode ser, a alegoria do personagem encaixa em muita coisa, mas, principalmente no american way of life, ainda mais quando se trata de um país que vivia em plena crise (de 1929) e possui um orgulho imperialista por serem os detentores do tal "mundo livre".

Nessa esteira, pode-se colocar, mais abertamente, o Capitão América de Jack Kirby, que representa isso claramente no auge de uma 2ª Guerra, com a icônica capa dele socando Hitler na cara (não está errado, inclusive, fascista e nazista, diálogo é na ponta do fuzil). E é incrível como o quadrinho se transforma numa propaganda de nacionalismo, levando jovens à guerra. O ideário do herói, em um país que viveu uma guerra civil, duas guerras mundiais e sustentou o polo da guerra fria e de todas as outras importantes guerras do século XX e XXI, são extremamente fortes. Então, pensando assim, faz sentido que os comics sejam tão populares lá, que as pessoas possam se identificar.

Agora, o Brasil, mais que uma análise editorial, é preciso que se debruce sob uma ótica histórica.

Antes de mais nada: sim, houve heróis nacionais, como o Flama, o Raio Negro, Capitão 7, Judoka etc. mas são cópias que, até certo ponto fizeram sucesso nos anos 70, alguns deles, inclusive, como rádio-novela, mas, são poucos os que lembram e os que sabem desses heróis, então, fica aqui este parágrafo de salvaguarda.

De qualquer maneira, diferente dos EUA, o Brasil não tem um histórico de conflitos bélicos, assim como não tem um histórico de heróis nacionais. Quem são os nossos heróis nacionais? A família real portuguesa? Dom Pedro I que num "gesto de bravura" guiou o país à "Independência"? Tiradentes, que foi esquartejado sendo o menor dos envolvidos na Inconfidência Mineira? A Força Expedicionária Brasileira que foi empurrada pros últimos dias da Segunda Guerra?

Aliás, quantas guerras o Brasil teve?

A Guerra do Paraguai deixou grandes prejuízos para todos os países envolvidos e não há quem lembre da relevância desse conflito, uma vez que, hoje, ainda, há um tratado de paz estabelecido pelo Mercosul entre os países que compartilham uma mesma riqueza natural (visando interesses econômicos, claro).

Assim, o panorama que se forma é: o Brasil não tem heróis. E os heróis que ofereceram certa resistência em momentos de crise, são ofuscados pela poeira da história deixada pelos covardes, como a Lei de Anistia, que ainda hoje é utilizada como carta-branca por setores do governo para fazer revisionismo ou falseamento da história (como o infeliz do General Teophilo o fez recentemente). Assim, se o país respeitasse a sua memória histórica, poderíamos afirmar, que sim, Marighella foi um herói (sem receber olhares de reprovação dos centristas e dos ultradireitistas).

O que nos leva ao recente caso do quadrinho/filme "O Doutrinador". A começar pela premissa de um herói cuja identificação com o povo brasileiro é nula, a história tem como pano de fundo um "revoltado on-line" qualquer que resolveu que a solução era exterminar políticos na base da bala. Alguns podem concordar, mas quem se propõe a soluções simples não pode reclamar das consequências graves disso.

Então, o que se tem é essa ausência de uma visão mais estreita sobre contextos.

Sim, contextos: o contexto brasileiro não se aproxima do norte-americano em nada. Somos muito mais próximos dos países da América Latina.

Nesse sentido, podemos entender porque Mafalda de Quino é um grande nome dentro do que se entende como "banda desenhada" em todo o mundo, sendo produzido pelos nossos hermanos da Argentina: existe um contexto e existe, mais que isso, uma relação intrínseca com a história, com a sociedade e com a arte. Por essa razão que Mafalda pode ser visto como um respiro muito original dentro dos quadrinhos latinos -- mesmo que ela não use capa, ou tenha identidade secreta ou super poderes. Na verdade, a inteligência ingênua de Mafalda para questionar o mundo em muitos casos supera anos e anos de produção de qualquer herói gringo.

O Brasil, inclusive, em plena ditadura, viveu um grande momento com as joias raras que fizeram parte dO Pasquim Ziraldo, Jaguar e muitos nomes que vieram dessa geração que entrou pra história e continuam presentes, assim como influenciaria os cartunistas que viriam na década de 80, já em uma redemocratização, Angeli, Henfil, Laerte etc.

Mesmo assim, o cartum acaba não tendo a mesma "relevância" comercial que os conglomerados editoriais. Um alvorecer da forma como o Brasil lida com a sua nona arte acontece atualmente e os "heróis" são, majoritariamente, vindos do povo, afinal, como disse acima, o caráter belicista do país é nulo, movimentos contra opressores, como na época da ditadura, são impopulares (a ver a recepção deste momento político com o filme "Marighella"). Então resta à nona arte se voltar ao seu povo e a retratação dos supervilões diários e históricos.

Vide, aí, os quadrinhos de Marcelo Quintanilha, em "Tungstênio", que virou filme nas mãos de Heitor Dhália, "Daytripper" de Gabriel Bá e Fábio Moon, que lançou os irmãos no meio de quadrinhos internacional, "Cidade-Motor" de Camilo Fróes e Moreno Pacheco, levantam um futuro pós-apocalíptico do nível Mad-Max na Bahia, além da repercussão de "Angola Janga: Uma História de Palmares", de Marcelo D'Salete, ou mesmo o quadrinho "Castanha do Pará" de Gidalti Jr., inspirado num conto chamado "Adolescendo Solar" de Luizan Pinheiro (esses últimos vencedores do Prêmio Jabuti, principal prêmio literário do país).

página de "Cidade Motor" 
créditos: Universo HQ
Isso porque nem citei que, nos anos 80 e 90 emerge uma figura que traz personagens absolutamente marginais, com problemas surreais e situações de alienação social que elevam seus personagens à extrema loucura: Lourenço Mutarelli, que, aos trancos e barrancos, ainda os produz, embora tenha migrado com bastante sucesso para a literatura, tendo produzido em quadrinhos coisas absurdas, como "Transubstanciação" e para a literatura "O Natimorto" e o "Cheiro do Ralo" que são livros de inegável qualidade literária.

Assim, fecha-se o ciclo, tornando a nona arte brasileira num produto evidentemente literário e que busca a sua inspiração no meio literário, que por sua vez busca seus personagens e tramas numa realidade brasileira muito urbana, muito corriqueira e muito catártica, o que eleva, assim, o nível dessas relações de arte de fato para muito além dos temas de super-heróis norte-americanos. O heroísmo vem do povo - mesmo que o mercado editorial seja um tanto quanto elitista.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Antropofagia do Rock Nacional - Lírica e Forma (breve análise)

Oswald de Andrade falava em seu Manifesto Antropofágico sobre os rumos da poesia brasileira a partir da semana de 22. Se alimentar de toda e qualquer influência, miscigenando e criando a identidade própria (ou quase isso). Caetano fez o mesmo 40 anos depois com a Tropicália e essa relação entre a música e a poesia de reflete de maneira muito saudável no Brasil - e, claro, o rock nacional, em algum momento iria cometer esse canibalismo de maneira muito positiva em algum momento (como de fato acontece hoje).

O rock nacional, aliás, o roque, se divide de tempos em tempos em determinadas categorias e subgêneros que fogem ao nosso olhar (ou audição).

Recentemente estava pensando nessa coisa enigmática que são esses movimentos invisíveis que surgem de tempos em tempos e que só nos são apresentados quando alguém enfim explana essa visão de fora, essa macro visão amalgamatica das coisas.

Existe a geração 80 que levou nas costas algumas bandas que ainda hoje são históricas, como Os Paralamas do Sucesso, ou o Lobão, que, para além da pessoa escrota que se tornou (assim como Roger do Ultraje a Rigor), é um músico inegavelmente talentoso.

Dentro daquele momento podemos pinçar algumas tendencias, como uma clara influência do punk/pós punk principalmente na vertente brasiliense, da Legião e até da Plebe Rude - ao passo que você tinha um interesse estranho com o ska.

Destaque, também, para a New Wave que provavelmente estabeleceu maiores traços afetivos com essas pessoas que hoje se encontram na casa dos 40 e poucos. A Blitz, pra mim, é um exemplo claro disso, mas em geral, a própria New Wave como extensão do que foi o Punk também deixou seus traços em algumas bandas. Aqui e ali você pode enxergar um The Cure (Legião Urbana tem trechos de "Será" que para mim são claramente retirados de "Jumping Someone Else's Train", assim como "Tempo Perdido" é um beijo descarado nas guitarras do Johnny Marr, do Smiths) um B'52s e por aí vai.

A efervescência política e, principalmente, a abertura democrática permitiu que esse soft punk vindo de Brasília existisse, mesmo que se comparados com o eixo Rio-São Paulo eles sejam algo bem menos agressivo, até, diria, ingênuos.

Mas o que se observa aí é um flerte com uma identidade estrangeira. Poucas são as bandas e artistas que trouxeram algo fora desseb padrão, você tem aí, registros mais antigos de Secos e Molhados, que mesmo com a sua estética Glam, eram diferentes - ou ainda, Os Mutantes que surgiram na efervescência da Tropicália.

Claro, óbvio, que já naquela época tinham bandas como a Patife Band que não soam como nada já conhecido até então, ou ainda Os Mulheres Negras, Picassos Falsos que são casos a parte. Mas aqui trato do mainstream (afinal até no cenário internacional existem esses pontos fora da curva, como, por exemplo, Frank Zappa).

A tendência, então, se manteve até os anos 90 quando, enfim um subgênero emergiu ao mainstream, trazendo elementos regionalistas e enriquecendo a lírica para além dos lugares-comuns que só eram muito próprios da MPB que foi o manguebeat. Chico Science elevou a outro nível uma mistura de maracatu com hard core, refazendo o trajeto iniciado com Caetano na Tropicália, quando misturou elementos em sua lírica e misturou Brigitte Bardot com Coca Cola e bomba atômica - ou até Raul Seixas, como minha amiga salientou, que no início misturava Luiz Gonzaga e Elvis Presley. Entretanto, a mistura se aproxima na lírica e na forma, com a Tropicália, mas ainda assim com algo muito próprio e que, apesar da morte precoce de sua principal voz, sobrevive como parte de um movimento que daria forma e faria escola para uma série de outras bandas. Mas para que isso aconteça é preciso estar atento a duas outras bandas que surgem mais ou menos na mesma época: Pato Fu e Los Hermanos.

Pato Fu tem o mérito lírico de elevar o nível de suas letras sem perder certa doçura e simplicidade, sem falar no mérito técnico de seus músicos. Los Hermanos, por sua vez, na forma experimenta a marchinha, o hard core e faz um primeiro disco excepcional.

Essas duas bandas seriam responsáveis por ditar um norte que seria seguido ao longo de toda a primeira década do século XXI e que pode ser sentido até hoje, numa criação de identidade própria da música que, cada vez mais aproxima o roque da MPB. Ao longo dos anos, nomes como Mombojó, Móveis Coloniais de Acaju ajudaram a desmembrar movimentos iniciados lá no finzinho da década de 90 que trouxeram, inclusive artistas que olham para a MPB com um pouco mais de vontade e fazem dessa a sua base, como Cícero, Céu (antes de flertar muito mais com o reggae), Tiê, Tulipa Ruiz, Jeneci, Silva, Phill Veras, Ana Canas etc.

Contribui para isso o advento da internet, claro, que ajudou muito a divulgar o trabalho de artistas cada vez mais diferentes e que viriam, até mesmo, a elevar a nível lírico boa parte das bandas de roque propriamente ditas e aqui podemos inserir bandas como Metá Metá, Carne Doce, Ventre, Lupe de Lupe, O Terno, Karina Buhr, Cidadão Instigado (mesmo que esta seja um caso a parte) etc.

O fato é que, hoje pode-se dizer que, resguardadas as devidas proporções e, principalmente, interesse por parte do público, dada a democratização da internet, hoje o Brasil dispõe de uma vasta gama de artistas que fazem roque com um elevado nível lírico, principalmente levando em conta o flerte desses artistas com a MPB (e a inevitável influência desta com a prática literária e poética brasileira) e, não mais macaqueando e emulando gêneros e subgêneros estrangeiros.

Mas, que fique claro: não que isso necessariamente seja critério qualitativo, afinal, os anos 90 têm uma grande quantidade de bandas que são inegavelmente boas e que ajudaram a construir bases pro que viria na década seguinte e que cantavam majoritariamente em inglês se valendo do lo-fi de bandas como Yo La Tengo, Guided by Voices e Pavement. Cigarettes, Pin-Ups e mais notadamente, Pelvs.

Mas isso já é conversa para outro dia.

sem título 121

tem esse silêncio
cercado de barulho
no caminho pra casa.

eu o abraço
e me aconchego
e vejo a dança dos fios dos postes
feliz, como uma criança
que descobre a física
das coisas não ditas.

tem essa aura suja
que carregam as capitais:
é peso demais
pra se carregar
numa única chuva
que cumpre seu papel
de lavar nossa sujeira
e escorrer
uma lama
que só se desloca de rua a rua
como este ônibus
que me leva
do ponto a
ao ponto b
sem demora
e como sujeira,
eu vou embora.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

caçada

você vai me seguir
você vai me procurar
você vai se frustrar
você vai se fingir
de amigo e conversar

você vai me seguir
você vai me abordar
você vai se cansar
depois de me infligir
tapa e pontapé, tentar dialogar.

você vai me torturar
e eu vou conseguir
enfim me libertar
sem soltar um único a
até você se frustrar e me matar.

não vou ser mártir
não vou ser herói algum
mas vou te assombrar
à noite, quando você deitar
debaixo de sua cama vai checar

e quando eu for fantasma
monstro que você criou
você vai se perdoar
lamber suas feridas
e me incriminar

mas tudo bem,
tudo bem,
eu vou ficar bem,
tudo bem,
tudo tem o seu tempo,
tem e vem,
como tudo na vida
eu vou levar bem,
numa boa.
no além e aquém
do que tem de estar bem
sendo eu:
seu ninguém.