quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

estrangeiro nativo

eu não sou deste país,
eu sou cidadão do mundo,
eu sou cidadão do fundo
de um quarto escuro.

eu não sou empregado de ninguém,
eu não sirvo a mestre nenhum,
eu crio os meus castelos e moinhos
e com meu escudeiro, vou além,
vou pra lugar algum.

eu não falo português,
eu falo outra língua,
não adianta me imitar
nem tentar fazer rima,
eu sou latino americano,
tenho sangue quente,
não tenho eira nem beira,
mas sigo contente,
e toda vez que me acusam
eu chamo toda a gente,
pra bater, pra te xingar,
quem sabe até te esmurrar
e fazer careta,
ocupar uma rua
ou uma cidade inteira.

eu canto samba de raiz
mas curto rock n' roll,
não faço questão de ir a igreja
e faço dos versos o meu show,
não toco violão, não tenho oração,
mas guardo sempre a boa intenção
de fazer valer o que eu sou.

eu não sou brasileiro, eu sou cearense,
sou de fortaleza, do itaperi,
que é lugar de gente,
eu sou dessa rua, eu sou desta casa,
eu sou minha família,
eu sou minha asa,
não tenho eira nem beira,
mas faço como ninguém
um café e puxo uma cadeira
pra conversar dessa situação,
desse nosso sofrimento, desse novo apagão,
eu falo dessas coisas e não digo nada
durmo tranquilo quando não faço amor de madrugada.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

sem tempo

2 irmãos, mãe morta, atropelada, 18 anos. era um desespero sem tamanho. não bastasse o pai, sumido no mundo, inda agora essa. dois irmãos, ele, sem emprego, sem faculdade. presente de grego, futuro de lamentação. não adianta chorar.
ensino médio, cabou-se, emprego de meio-período, entrega água no garrafão, a madame do carro popular, segura a bolsa com força: só quero o troco. todo dia uma prova diferente: no troco da matemática é que se aprende bem, no uso do vocabulário certo é que uma moeda convém: bom dia, com licença, obrigado.
não tinha tempo pro orgulho, não tinha tempo para sentir ódio. era só resignação.
levanta cedo, prepara café, arruma menino, arruma menina, vai deixar, pega lanche fiado, desconta no fim do mês.
era presente de grego, esse do destino, transformar logo cedo em homem um menino. obviamente, claramente, reticente, nem uma gota de suor, fumava escondido (era bom exemplo).
todo dia era essa a rotina, parecia um sonho o fim de semana. a saudade da mãe era tamanha, mas não tem tempo pra saudade, não tem tempo pra orgulho, não tem tempo para sentir ódio: tô passando, eu ouvia ele gritar. deixava água, compras também. homem de confiança do pinheiro, o dono da budega, ia pra onde for, sem medo, com bolo de dinheiro, voltava com o troco que o fulano mandou.
moreno, às vezes era preto, nego, neguim, ficou conhecido neguim da água. braços finos, mas levanta galão de 20 litros com uma mão só.
neguim era forte, era conhecido, nem mesmo a malandragem mexia com o menino: esse é responsa, guerreiro demais.
o tempo corre igual a cargueira azul, rua acima, rua abaixo, beco aqui, sobe escada, ele nem pensava, faz um ano, nunca chorei.
foi na formatura da oitava série do irmão, que chorou primeira vez. aquele ali, meu irmão, é o guerreiro.
a irmã viria a se formar 3 anos depois (quando o irmão passou no vestibular).
era tanta lágrima que era mar, derramado, de seco, de magro, mas escondido. tudo era só alegria, mesmo que às vezes tivesse que se estressar, mas neguim não tinha tempo para nada, não tinha tempo pra rancor nenhum.
entendia pouca coisa de si, do seu lugar, foi por isso que se chocou quando o irmão disse que ia embora, estudar no piauí, aprender engenharia e depois tirar eles dali.
a irmã saiu também, arranjou emprego no exterior. achou chique demais, nem reclamou.
aí que a casa de neguim ficou vazia. foram 9 anos segurando, mas, mais dia menos dia, essa lágrima teimosa de tristeza cairia.
e caiu, mas neguim não tinha tempo, não tinha tempo de nada não. morava no barroso, tava completa a sua missão.
nunca mais soube de neguim, acho que o irmão o levou pra outro lugar, ou a irmã, sei lá. tava sempre apressado, eu sabia que em algum lugar ele ia chegar. 

sábado, 19 de janeiro de 2019

sapato emprestado de um amigo (ou carta em versos com a voz de belchior)

eu uso sapato emprestado
já há mais de 3 anos
e é o sapato de um amigo, que chamava de ex
tamanha infantilidade
eu nunca pensei.

mas olha, meu amigo eu te carrego comigo
e faz mais de um ano,
mesmo que se falar
a gente já não fala faz um tanto.

eu peço desculpa pela minha ausência,
quanto mais eu sumo
mais o coração cobra clemência
porque hoje o que eu carrego comigo
é mais que dois pares de sapato
um cadarço encardido
e um solado desgastado
eu carrego minha vida
pois não me esqueço nunca daquele dia
em que eu quis me matar
e você me levou numa viagem
que eu neguei por não enxergar
o bem que você me fazia.

hoje eu sou arrependimento
mas também sou gratidão
pela sua companhia
mesmo que tão ausente
e a culpa é toda minha.

eu carrego bem mais que léguas andadas
eu carrego também
as canções que foram cantadas
no calor daquela casa
e as muitas conversas regadas a cachaça
e coca cola pela madrugada na sala.

é, meu amigo, talvez esse sapato eu não devolva
mas quero retribuir essa amizade
essa paz que você leva e traz consigo
que é um caos calmo e contido,
apenas pela alegria de ser.

é, meu amigo, eu verso na voz de belchior,
e creio que esse presente ruim, ainda vai nos trazer
algo muito melhor
ou até muito pior,
mas eu acredito no seu sonho
ele é um pouco meu também
e esse sapato, eu lembrei,
calçou meu pé tanto tempo
findou sua sola,
mas não se preocupe, que convém
que na minha próxima visita
leve uma bebida na sacola
e uma conversa pra uma boa prosa.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

mi carino II

é um carinho mudo
que eu nutro no meu canto
pelas coisas bonitas do mundo.

tenho vontade de beijar meus amigos
desconhecidos
irmãos
sentir um abraço quente
bater no peito a peito
mão a mão.

é esse sentimento de concreto
que se solidifica no meu peito
como uma imagem criada
instantaneamente.

bebo o amor líquido
enquanto trago meu cigarro
tomo meu café
enquanto espero um afago.
e como uma luz que se exalta em meu peito,
eu ilumino meu caminho,
na direção certa de um abraço.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

um conselho ao poeta romântico

o poeta baixo é grande
quando fala por uma mulher
o poeta, eu acho,
não está interessado no que ela quer.

o poeta fala, versa a mulher amada
odes e sonetos sobre a mulher invisível
sobre a mulher sonhada
sobre a mulher impossível

a mulher sem pêlos,
a mulher sem cor,
a mulher sem anseios,
a mulher sem amor.

é fácil matar o poeta,
se uma mulher começar a falar
é fácil enforcar um poeta
se ela começa, ela mesma a versar.

o poeta instituição, histórico,
o poema indiscreto de coxas e seios
de boca, de lábios, de desejo irrisório
de quem a mulher não nutre desejos.

imagine a mulher que fala do falo,
da frustração do homem mediano
imagine a poetisa que diz não me calo
a uma versão minha que não amo.

imagine você, que a poesia é feminina
que o poeta cria seu verso infantil
crescendo nesse substantivo que culmina
nas criações de uma mente indiscutivelmente viril.

o poeta tem que mudar sua poesia,
o poeta tem que ouvir uma, toda mulher
saber que seu horizonte se amplia
a medida que fora do corpo se constrói o que se quer.

respeite o corpo que versa, pense nisso!
é mais fácil que descrever o impossível
e se matar aos 27 por ter sido omisso
ao pouco que se preze do que é crível.

este mesmo poeta, se revisitado, tem suas falhas
é impossível não ter sido um erro antes deste fato:
pensar fora do corpo feminino e das suas saias
e deixar essa masculinidade velha e aborrecida no passado.

pense nisso, poeta; pense com carinho!
vamos criar novas crianças com um amplo horizonte
e fazer dessa geração um exemplo, um caminho
para ir mais além do que fomos, para ir cada vez mais longe.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

uma canção desesperada

eu tenho um violão e umas ideias na cabeça
e faço delas o meu norte pras palavras.
eu tenho poucas notas, mas carrego uma certeza
-- e faço dela o pedestal pra minhas mágoas.

eu tenho uma vontade e um milhão de desejos
e faço deles aço pra construir minhas asas.
eu tenho um sonho e um bolso cheio de segredos
e em cima deles me sinto a prova de balas.

eu tenho tudo o que preciso para ser quem eu sou
tenho o tempo comigo para ser meu abrigo
eu tenho a pólvora pro meu canhão de amor,
sou o mais perigoso terrorista do meu inimigo.

eu faço versos e não a guerra do homem,
que serão eternos como a esperança
eu faço guerra contra a ignorância de quem tem fome
pra que eles se juntem a mim num levante de vingança.

eu tenho uma canção na garganta pronta para entoar
e ela agora é cantada entre suspiros e murmúrios.
eu tenho essa canção e ela um dia vai ecoar
vai fazer cair as armas e derrubar os muros.

eu tenho uma visão que no escuro envaidece
eu tenho uma cegueira que na madrugada é trunfo
eu tenho uma missão e o dia ainda amanhece
e quando isso acontecer a gente vai...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A Utopia do Nordeste Independente

Teve esse dia, que sonhei tanto,
que o nordeste depois de sofrer
com preconceitos nada a ver
achou no mundo o seu canto.

Era pai de família e mãe também,
era primo, era prima,
era tio e era tia, avô e avó,
de Cocal de Telha a Santarém.

Todo mundo pedia,
todo mundo gritava
solte a gente, arre égua,
ou a gente se desprega na base da enxada.

Tinha esse tal presidente,
São Paulo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro e era tanta gente
dos interiores e capitais,

Que também queriam ver
o Nordeste independente,
mas os motivos desses aí
eram muito diferentes.

O paulista dizia que carregava
O Nordeste nas costas,
Outros diziam
Que era terra de gente preguiçosa.

Mal sabiam eles, que cada prédio
e avenida gigante,
Tinham sangue e suor
Do povo retirante.

Depois veio gente perguntar
Que “se o Nordeste é tão bom
Por que tinha tanta gente
Vindo daí pra cá?”

O motivo eu sei bem,
Mas antes que eu lhe diga a verdade,
possas saber que todo nordestino que tá aí
Do seu cantinho tem muita saudade.

Mas desconfio, cá pra mim,
Que o sudelista não saiba ou ignore nossa saga,
Pois que o motivo de o Nordeste ser assim,
É porque historicamente, nossa riqueza foi explorada.

Inclusive, caso você não saiba, direi:
Que quem sustentou toda a massa
Foi da cana, a bagaça,
Pra fazer mais doce o açúcar do rei.

Mas não tem problema,
tá tudo nos livros de história,
Tudo isso que lhe digo, eu estudei,
e carrego comigo
Pra dizer pra você nesses versos de agora.

Tinha gente que não concordava,
Nem todo mundo era abestado,
Porque mesmo num lugar tão sofrido
Há de se separar o joio do trigo,
Pra reconhecer o povo aguerrido
Que vivia no seu estado.

E esse pessoal quando viu o nordestino gigante
Gritar por independência e alforria,
Se juntou no mesmo grito num instante,
E disparou em direção ao que esse povo defendia.

E foi um levante popular,
Nenhum governante, coronel,
Padre, budegueiro, vereador,
Deputado ou advogado de anel
Teve parte no clamor.

O presidente,
Era essa figura estranha
Que carregava o seu vocabulário
Numa bolsa de colostomia
Para que não perdesse a oportunidade
De descarregar a sua eugenia
Numa mediocridade tamanha.

Era casado com uma cearense,
O que não queria dizer nada,
Uma vez quase nega ajuda
ao Estado da esposa
E quando mandou ainda passou na cara

“Faz forte oposição a nós”, ele disse,
De Camilo Santana, uma figura tão insossa, incolor e inodora,
Que seria incapaz de ser contra a picada de uma muriçoca,
Avalie de uma figura tão tacanha.

E seguiram-se anos assim,
Nesse morde e assopra,
Até que o povo um dia se cansou
E diante dos mandos e desmandos
Do Presidente-Bolsa-de-cocô,
Resolveram pôr as mãos na obra.

Mandaram Exército, Forças-Armadas,
Marinha, Força Nacional
E até a Aeronáutica.

Mas ninguém arredou o pé,
O povo ficou gritando lá,
Os políticos eleitos
E até os mais direitos,
Que não sabiam o que fazer,
Resolveram se juntar e protestar.

E o povo sudelista, vendo aquela situação
Foram pra rua pelo motivo errado
Queriam eles se livrar dos 9 estados
E construir uma nova nação.

O presidente então, todo cagado,
Resolveu pegar a sua caneta bic,
O bandeijão deixou de lado,
E assinou o atestado:

“Eu declaro,
Como presidente do Brasil
A independência dos Nordestinos,
Esse povo comunista e socialista,
Com influência clara da doutrina feminista,
E Que vocês vão pra puta que os pariu!”

Sob vaias e aplausos
O presidente sancionou
Que o nordeste era independente
E nenhum sangue se derramou.

Muita gente veio pra cá,
Ajudar a fazer história,
Muita gente foi pra lá também,
Esses eu quero é distância da minha memória.

Mas o que importa é que teve um carnaval
Foram 4 dias de festa,
Em cada estado
e em toda capital.

Claro que o começo não foi fácil,
Isso temos que admitir,
Empresas foram embora
Não puderam suportar
A soberania de um governo popular
Longe das asas do Jair.

Mas o Nordeste era grande, era forte,
Cheio de recursos naturais,
Pois você veja que o sol virou energia elétrica
Deixando a era da escuridão para trás.

Ainda, na orla do nosso litoral,
Era tanto vento,
Que a ideia da ex-presidenta de estocá-lo,
que na época entenderam mal,
Virou energia eólica, muito limpa
E com o devido cuidado ambiental.

O índio também foi respeitado:
Ameaçaram cortar os colhão
De empresário malandro
Que desse uma de ladrão
Invadindo território demarcado.

Disseram os donos do poder popular que
“quem quiser infringir lei ambiental,
Aqui não é lugar,
Basta atravessar a fronteira,
Se tornar cidadão brasileiro,
Que você poderá desmatar”.

Diante dessas medidas,
A Europa abriu relação com o Nordeste,
Já com presidente, hino e bandeira
O mundo estava vendo o pleno desenvolvimento
De um povo que não tinha fronteira.

A música era ímpar em cada lugar:
mangue beat, heavy metal, hard core
forró, axé, pagode, samba,
todos conviviam como música popular.

Era um sonho tremendo,
Era um sonho gigante,
Infelizmente acordei,
Mais triste do que antes.

O Brasil de agora despreza sua história,
Pois se soubessem de verdade das respostas
Jamais sustentariam essa história
De carregar o Nordeste nas costas.

Então, seja URSAL ou URSENE,
Do Brasil, o Nordeste está de fora,
Vou ficar com a minha utopia
Até que eles recuperem sua memória.