sábado, 9 de abril de 2016

Os Filhos da Primavera

ao tempo
que tudo leva
mesmo que leve 
do jeito que levo 

As pessoas no bar o olhavam, e não era para menos. No calor da cidade, mesmo que com essas chuvas de abril, usava um sobretudo, à cidade nem isso era dado de se ver ou usar, mas também ninguém falou. E falaria? Eu mesmo não posso adivinhar o que faria se o visse por aí, mas digo uma coisa e uma coisa apenas: esse homem não é normal. Dizem que não é daqui, deve ser de outras paragens onde as pessoas nascem daquele jeito, a pele escura, o rosto marcado pelo tempo como as folhas amassadas costumam costurar seus vincos, tumores, segundo eu supunha, que pareciam raízes, mas não eram. Disse-me que vinha de muito longe, que tinha cento e tantos anos, nasceu no século retrasado, e é de se espantar que seja tão lúcido, tão leve no dizer, mas que queria sol e nessa cidade, você sabe como eu sei, é uma bênção e uma maldição – e deus mandou o sol como castigo por termos usado da terra mais que o que precisamos, aliás, ele fala de terra, sol, ar e água como um astrólogo, bem dizer era isso que era, que na sua face era escrita a terra e o sol, para sempre assim fosse louvado seu batismo em água e tudo o mais. Dava angústia ver seus tumores. Daí que ele desatou a falar.
Quando ainda era difícil ver tornozelo de mulher, a sua mãe só com os olhos era a mulher mais encantadora que a cidade onde nasceu já tinha visto. Era filho de uma linhagem há muito extinta, muito pela sua maldição. Sua família, dizia, era do sudeste, ou coisa assim, onde há mais frio que quente e as pessoas costumam se esquentar umas nas outras. Tinha a festa da primavera na serra, celebrava a colheita farta, e nessa história, seu avô era homem de respeito, tinha dinheiro e muito prestígio, tudo o mais que até o rei já se fizera convencido de mandar carta e convidá-lo a ter com ele, sabe lá o que. O rei, sim. Dom Pedro, deus o tenha, daí que em dado momento sua mãe era moça, casar era honra de passar o nome pra frente, descender o sangue azul. Desde que debutou, a moça era alvo de olhares de toda a serra – morava na serra, eu disse? – e com mais ou menos 16 anos o pai já havia especulado fazer acontecer o avô de chamado pela casa. Em dado momento, apareceram os pretendentes, das mais diversas regiões, onde o julgo da festa da colheita se fizesse visto que soubesse: a cobiçada filha estava pronta.
Na cidade corria que ela era uma louca ou amaldiçoada, pois que o marido de uma dona que por lá morava só de vê-la enlouqueceu e queria lutar contra o desejo de abandonar tudo pela moça, que tinha aquele olhar de louca. O marido que tinha uma quitanda abandonou o balcão e pôs-se a lutar contra sua vontade, passando dias em reclusão sozinho em seu quarto, até o dia em que foi encontrado enforcado deixando uma carta sobre o criado-mudo. Até aí, coincidência, o homem era louco, mas em seguida, um rapaz, que era filho de um padeiro distinto da cidade, conseguiu invadir a propriedade do senhor de terras, seu avô, e espiou-a de relance pela fresta da janela – a história que correu pela cidade foi de que, não tendo mais sido visto, ele saiu uivando pela noite e virara um ciumento animal que rondava a fazenda, até que um dia foi morto um monstro-cão, que era meio bicho peludo, meio homem, a cabeça uma sopa de miolos e sangue que se derramou pela mata e onde fecundou com a terra o seu sangue nasceram girassóis azuis, que não seguiam o sol, mas a lua, murchando-se ao contato com o sol e refazendo-se com o cair da aurora num espetáculo nunca visto. Lenda urbana, conversa de folclore, tudo bem, até surgir esse homem, cabalístico terceiro, que fora aprovado e certificado como partido certo para aquela sua mãe que não queria lhe olhar na cara – rejeitou-lhe, embora não fosse dado a ela nenhum poder de decisão sobre quem pudesse levar-lhe a mão ao altar. O homem, que vinha de longe, hospedou-se na casa, para que dia seguinte seguisse viagem para casa, dar as notícias e tudo, não? pois que o homem ao dormir, três e quinze da madrugada só se via o fogaréu saindo de sua janela, o corpo em combustão espontânea, ardeu até o osso, deixando nas molas de aço do colchão pedaços de gordura grudados. O cheiro da carne esturricada ficou impregnado no quarto, enlouqueceram a preta que cuidava da casa que foi encontrada enforcada com o lençol no seu quarto de dormir.
Até que dadas as desgraças, aos seus 17 anos, na festa da primavera, veio o homem, à cavalo, todo preto, alto e magro, pálido feito um cadáver, seu pai, a moça não fez concessão ao forasteiro, que a olhou e também a quis, este não enlouqueceu de morrer ou de matar, nem de virar animal, casou-se, filho distinto de outra linhagem de homens distintos, sangues azuis, também seu avô paterno já sendo um homem de outras paragens, onde viajava Europa adentro, trazia consigo a ideia da república (contou-me mais tarde que o cavalo no qual Marechal Deodoro galopara rumo à proclamação da república era na verdade de seu avô) e foi-se à jato o casamento.
Daí que em primeiros dias de casamento, o pai da noiva dera mobília inteira, não aceitou dote, nem coisa alguma, já que firmara um contrato de cavalheiros com o pai do noivo, que por sua vez oferecera uma velha e grande fazenda feita pelo tataravô de seu avô.
Os problemas do casamento começaram com pouco mais de sete anos, depois de tentarem, sem sucesso de todas as formas possíveis, ter filhos – para desespero dos sexagenários avós, que viam um problema em descontinuar as suas linhagens, sendo assim, puseram em voga a possibilidade de desfazer o casamento para que assim a riqueza de ambos pudesse ser levada adiante por um homem de negócios de punho firme que veria na aurora do novo país a fortuna que levantaria os seus sobrenomes. O moço então, cogita a possibilidade de desmanchar o casamento, diante da infertilidade da esposa, que serventia teria para o futuro de levar à frente a fortuna acumulada de ambas as famílias e diz para sua esposa, numa noite chuvosa o que pensava sobre o caso. Descaso. Desesperada, a mãe controla a angústia, espera a noite, remói consigo o ódio de borbulhar e babar no canto da boca, daí corta então o marido enquanto ele dormia. Bem onde você acha que é, bem onde dói, com raiz e tudo. Tão profunda e grandiosa foi a dor que sentiu que não conseguiu gritar, se mexer ou qualquer coisa, sequer chorar, chorou, apenas espasmou por um instante e deixou-se amolecer o corpo inteiro, vivo mas não tanto. A mãe, na chuva, enterrou o órgão com sangue nas mãos no quintal, sem saber bem o que fazia, movida apenas pelo ódio, o nojo e o desespero que levava consigo. Parou então por um instante para ver que mulher que era, não conseguia saber porque o fizera, logo depois e deus soprou em seu ouvido que era o certo a se fazer, porque ele, o onipotente queria assim e que assim seria para todo o sempre amém – deus era um homem com as mãos amarradas em correntes que saiam da terra, havia vendas ensopadas de sangue em seus olhos.
Sei que a história parece irreal, mitologia grega, folclore de doido, alucinações das mais pesadas, que nem o mais febril dos doentes poderia sequer esboçar dois ou três palavras, inclusive não peço para que acredite em mim meu bom amigo, sou o portador das ouças, a voz que me sussurrou isso bebeu destes copos apenas, nunca fui homem de mentir para o vazio, nem comigo amargo dor nenhuma de contar isso sem propósito, apenas repito tal e qual a história como o homem me contou – sei que você já está cansado, inclusive, mas vou tão cansado de guardar comigo este segredo que dou-te uma dose por conta da casa para que continue a escutar o desfecho do que ouvi, preste atenção.
Durante o período que se seguiu e acalmaram-se os nervos diante da situação, seu pai passou o resto dos seus dias inválido numa cadeira, sua mãe continuava bela e jovem, os olhos de louca, descobriram depois, era prova de sua inocência infantil, continuava feliz, continuava a viver e podar uma muda que cresceu no lugar onde enterrou o membro amputado, o pai observava com olhos duros sem nada poder fazer a não ser cagar o dia inteiro e um enfermeiro a limpá-lo até o fim de seus dias, que por sinal, duraram muito, em cima da cadeira de rodas, o homem viu seu pai morrer, seus frutos podres, seus animais e seu próprio corpo, ao seu lado, a mãe, sua esposa, que apesar de tudo lhe tinha amor, cuidava-lhe aos beijos.
Uma árvore cresceu do lugar onde todos os dias a mãe punha-se a cuidar e, meu amigo, o absurdo vem de que essa árvore passou a dar frutos. Os frutos eram pequenos fetos que cresciam na primavera. Alguns julgavam-se frutos podres, caíam e espatifavam-se no chão, seus corpos com frágeis membros que não eram mais resistentes que galhos secos quebravam-se por inteiro, sobrando apenas a recolha de tudo o que era resto e as lágrimas da mãe que não conseguia salvar a todos. O pai, que estava lá sem estar, não conseguia sequer mover os olhos ou levantar um dedo, pela primeira vez em 5 anos, chorou antes que pudesse respirar pela última vez e virar uma pilha de carne sobre ossos atrofiados pelo tempo cobertos por um lençol prontos para serem despejados debaixo da terra. O desespero da mãe diante da situação era tamanho que por mais de uma vez se matou. Tentou atirar em si mesma, enforcar-se e até mesmo envenenar-se, entretanto, deus, onipotente, desceu dos céus, dessa vez na figura de uma ave negra e lhe disse que não seria possível morrer até que ele desse permissão para tal.

Alguns fetos conseguiam ser salvos e colhidos, a mãe punha-se a cuidar de suas frágeis existências. Pouco a pouco os filhos eram cuidados, engatinhavam, quebravam uma perna, morriam, andavam, tropeçavam, caíam, morriam, iam falar, as cordas vocais, frágeis e acostumadas com a semiparalisia de músculos rachavam, esfarelavam-se, pássaros bicavam-lhe os olhos, cegavam, morriam, até mesmo cupins passaram a apossar-se dos corpos de alguns bebês, e os comiam de dentro para fora, deixando-lhes somente a casca para frágeis, desfazerem-se ao primeiro vento e morrer. Se uma fagulha de fogo fosse chamuscada em sua companhia corria-se o risco de queimarem-se fatalmente, afora as deformações físicas que alguns tinham, de coluna envergar-se, em seu crescimento, e, depois de certa altura, quebrarem-se, morrer. Parecia fatal ser assim, ele me disse, mas com o tempo, os cuidados foram sendo redobrados, e, até que um dia, o mesmo deus resolveu descer do céu em forma de raio e queimou a árvore inteira, para que só assim a sina da mãe tivesse fim e também a de seu pai – o que se seguiu depois do raio foi um choro de mais de cem fetos que rasgaram-se pela madrugada enquanto queimavam até virar pó e fumaça. Passaram-se então alguns anos e chegaram à idade adulta apenas alguns desses homens, que por terem seus corpos já tão jovens cheios de rugas profundas em suas peles, era tidos como doentes, párias, objetos de repúdio da sociedade, afinal, ele me disse, o mundo não resumir-se-ia àquele lugar amaldiçoado pelo tempo. Entretanto enquanto seus irmãos apenas queriam sobreviver, ele resolveu caminhar até cansarem-lhe os pés e chegar até aqui. Viu de tudo neste mundo, lutou contra as mais diversas pestes, viu a guerra, a bomba e até os Beatles. Um dia, ele disse, voltou até o lugar onde era sua casa e encontrou apenas um lugar devastado por um matagal selvagem e profundo, árvores que cresceram no lugar onde deveria ser seu lar, adentrou uma porta e encontrou o que costumava ser seu irmão, um rosto desfigurado em forma de árvore que cresceu de dentro do quarto, arrancou as telhas e dava frutos doces e amarelos que alimentavam pássaros que fizeram casa onde deveria ser sua mão. Profundamente enterrado, virando alimento da terra, o irmão abriu um olho e disse que viveu, ao que ele disse que aquilo não era vida, então chorou porque o irmão não reconhecia que apesar de vivo ele estava morto. Isso faz mais de 50 anos, mais ou menos. Quando ele terminou de contar a história perguntei-lhe como pôde ainda estar vivo, ao que me respondeu que apenas não deixou-se fazer criar raízes em lugar nenhum, pagou a bebida e saiu, deixando aqui esse pó de madeira que você está com o cotovelo em cima.