domingo, 24 de novembro de 2013

no guarda-roupas

havia um corpo guardado no meu guarda-roupas quando cheguei de viagem, um corpo amorfo, cheio de veias azuis estendidas como desenhos feitos com caneta bic nas faces acinzentadas.
que fazia ali, não sei.
era um amigo, dez anos que não nos víamos. não bem um amigo, mas um conhecido, talvez não um conhecido, mas alguém cujo rosto perdi na memória.
os mortos em seu estado fedem igualmente.
olhava: ele tinha traços meus, traços de minha mãe, traços de um mundo inteiro nas veias de seu rosto. o corpo cheio, duro, as mãos duras, os dedos dobrados. a polícia fora acionada, o corpo fedia há dias, ligaram para lá, meu álibi era a viagem. minha esposa e meus filhos não moravam mais comigo. não sei que isso poderia ser.
mas fiquei parado, a polícia perguntava, a única coisa que ficou pontuado nas minhas respostas foi a última:

-- achei que ele já tivesse morrido.

eap

das feridas

não se sabe ao certo
o tempo que as feridas têm de sanar.

[se o corpo tem em demasia açúcar,
diz-se de um diabético,
ficará por bom tempo,
talvez a doçura dos corpos,
a sacarina em excesso que polui
e entope as vias do raciocínio
mas ainda bombeia sangue o coração.]

sabe-se apenas sangram,
sabe-se que inflamam,
que o pus escorre por sobre,
até finalmente a casca.

não é que a ferida tenha sanado --
arranca-lhe a casca, e sangrará,
mas verás, no íntimo, que já não dói
conquanto era ferida fresca --
a pele esbranquiçada já surge por detrás.

depois da ferida, que é que resta,
senão a cicatriz?
algumas feias,
algumas pequenas,
algumas que esquecemos ter.

tem delas que simplesmente
somem.

eap

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

versos íntimos v





aos contemporâneos

não encontro lugar neste mundo
nem tanto ao sol, nem tanto à sombra
desses meus contemporâneos.

talvez mais à casa, mais ao quarto,
minha cama, meus livros, minhas iras.

nem tanto a loucura, nem tanto a academia,
mas também não cedo fácil ao tédio nosso de cada dia.

talvez encontre lugar na normalidade de meus dias.
talvez o tal do tédio seja minha vida inteira
sem que eu nunca tivesse me dado conta.

e nessas noites assim, respiro fundo e digo pra mim mesmo:
“acalma-te, acalma-te e respira
que já vem o sol nascendo
e o dia de amanhã vai ser
sempre outro dia – embora o ônibus,
embora o café sem açúcar,
embora as notícias que se masturbam,
embora o sem-fim de coisas em loop infinito”.

só preciso manter a calma.
só devo me conformar.
isso de ser moderno me leva a crer
que serei já um pedaço esquecido de revolta
nas páginas de nossos diários
morto à bala na porta de casa –
eu só quero a paz de aceitar o meu silêncio.

cansam-me os artistas
cansam-me os aspirantes
cansam-me os estudantes
cansa-me a forçosa arte a qual
tenho que tomar à força.

sou da expressão natural da alma
sem precisar nunca apelar aos excessos
de vestimenta, de cultismo, de estilo.

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não sei se suporto minha geração.
talvez tenha nascido velho,
não tão conservador – ainda resguardo
um velho flerte com cuba
com a união soviética,
mas sempre com uma dor
que nunca cessa de saber que os muros
já caíram.

minha geração solitária,
patife:
todos eles fingem muito bem
que são pequenos franceses
com um cigarro pendendo no lábio
(aqueles modelos de quase jean-paul belmondo
e anna karinna – protagonizando um espetáculo
dirigido por godard, sem roteiros,
complicando o óbvio – não aceitar,
inconformar-se é saudável
complicar... nem tanto.).
sempre fui um pouco mais truffaut.

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sou o hiato
da própria existência,
mas sem lugar, sem ausência.

talvez a timidez seja o centro
do meu universo, do universo que crio
onde sou protagonista
antagonista,
vilão de mim.

talvez a verdade seja bem menos
dramática do que aparentam as linhas de agora.
tudo o quanto me importa
termina e começa na solidão
na qual tenho feito valer
meus dias.

talvez ainda essa mediocridade
que me martela
seja algo passageiro – amanhã quem sabe terei
arroubos de um egocentrismo de poeta,
uma vaidade que queria longe.

mas não sei se quero ter pena de mim
assim, calado, pode ser que seja uma opção
mais confortável.

sentar no sofá da sala
ligar a tevê
sentir vontade de dormir, acordar,
colocar os óculos, descer as escadas,
bom dia ao porteiro, fumar um cigarro,
tomar um café, ler um jornal, comprar livros,
encontrar amigos de bairro,
amigos de verdade,
tomar uma cerveja, uma cachaça,
seja lá o que for que aperte os nossos laços...

ter uma esposa, dois filhos,
um emprego, uma casa,
três estantes emparelhadas,
uma cama confortável...

às vezes o meu querer me culpa,
vejo esses meus aí, que nem são assim
tão meus, sinto raiva, não sei,
desse estereótipo de artista, artistisses,
todos eles reconhecem de longe
a vênus desbraçada.

todos eles querem ser desbraçados,
amputados os braços, serem belos.

sempre penso em como vou ser lembrado...
mas acho tanto... às vezes quero apenas que
eu seja ao menos lembrado... não por esses versos
auto piedosos, por esses choros murmurados
sem lágrima.

mas penso: todo mundo é definitivamente
sozinho.

então sei, assim, que não tenho lugar,
mas que às vezes só choro quando dá vontade,
ou quando convém saber da dor...

não sei se serei lembrado,
ao menos pelas piadas,
ao menos pelo cabelo desgrenhado,
pelos braços convulsos narrando,
pelo meu silêncio, pelos meus olhos apertados...

mas eu não queria ir assim.

eap