terça-feira, 26 de abril de 2022

desabafo dos 30 e poucos

30 anos e o medo ainda é o mesmo de dez anos atrás:
todos os momentos que guardei
hoje são como momentos fugazes
e coisas que me pareciam antes
tão importantes
estão empoleiradas e empoeiradas
na estante dos grandes fracassos que acumulei
eu mesmo durmo neste espaço às vezes
agarrado aos sonhos de ser um poeta,
um romancista, um contista, um músico,
um diretor de cinema com assinatura própria.
hoje, a arte daqueles dias evaporou e paira sobre minha casa:
tenho o ímpeto de sê-lo, mas nunca poderei tê-lo;
agarrar o vapor de ar que se espraia como ilusão,
e, como todos os meus pares, poderia ter sido tanta coisa.
mas não me debulho em lágrimas,
todas elas evaporam, hora ou outra,
tudo o que poderia ser e é, é o que está,
talvez outras escolhas, outras escolas,
outros erros que transformaria em acertos,
justificando todos os pecados que quis e gostei de cometer,
ao menos, na curva do destino, terei a noção
de que todos as minhas escolhas me trouxeram aonde estou hoje,
como não posso me queixar de ter sido falho,
mas quem nunca o foi, pensando em sempre acertar
e estar certo em tudo?
talvez minha única virtude foi nunca ter mirado na certeza,
mas nas dúvidas do caminho, ou, sequer, ter pensado,
na montanha-russa vertiginosa da vida
minha escolha foi sempre seguir reto,
como um autômato que esqueceu de ter outra programação
e pensando bem, 30 anos de escolhas não são 30 anos de erros.
olhando para trás, carrego bons momentos,
e eles são tudo o que posso me orgulhar,
estar vivo, apesar de tudo, estar são, apesar de tudo,
estar eu, apesar de todos,
dobrei-me, com certeza,
sem a pétrea certeza do ferro, mas a maleabilidade do plástico,
e a plasticidade da vida foi tornando os dias mais amenos
bem como existir se torna, cada dia menos, um fardo insuportável,
como um dia foi,
pois, aos 10, aos 20, o momento é o agora, 
e a mudança é para ontem,
hoje as mudanças podem ser amanhã, pois o hoje é impróprio.
até mesmo estes versos foram adiados à exaustão,
pois eles acontecem no momento em que a realidade me consome,
e mesmo a realidade é um mundo paralelo à parte,
de programas a serem executados e sofrimentos pelo tempo curto,
eu não sou mais o poeta de 2012,
tampouco o de 2014, muito menos o de 2017.
o poeta de hoje escreve com a incerteza de que esses versos
não poderiam ser uma prosa envergonhada,
mas também, quem sabe, essa seja a maneira que encontrei
para expressar melhor todos os sentimentos amalgamados no ar
que não sei se são bons ou ruins, se são coloridos ou não,
o fato é que a realidade me consumiu enquanto verso,
parágrafo ou texto e hoje não sou nada mais que um tijolo.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O Senhor das Moscas

Meu pai tinha mania de contar histórias de terror quando nós viajávamos para uma casa de praia da família. Por si só, era um homem com histórico de bom humor e que vez por outra, nesses eventos, que reunia alguns de seus irmãos, cunhadas, meus primos e às vezes meus avós, pregava peças elaboradas – sumia por horas e aparecia sujo de lama do mangue, gemendo como um monstro, ou se enterrava na areia apenas com a cabeça de fora e nos dava sustos e, muito dessa sua fama, acabou por definir a sua profissão, que era locutor de rádio AM. Era uma rádio de notícias mas que, lá pelas tantas, acharam boa ideia levar um projeto que meu pai tinha proposto em outros empregos e que sofria das mais variadas negativas, seja por ser uma proposta esdrúxula e apelativa, seja porque não havia espaço na grade, que era, simplesmente, narrar contos de horror urbano às 3 da madrugada.

Disso, fez-se um sucesso relativo, os ouvintes habituais da rádio passaram a escutar o programa e criou certo burburinho na cidade e meu pai, que até então era apenas um homem de gostos duvidosos, passou a ser cultuado pelas histórias. Algumas ele mesmo inventava, outras eram enviadas para a redação do programa – obviamente, nem todas poderiam ser lidas, pois envolviam crimes reais e essa, até então, não era a intenção dos produtores do programa.

Fato é que, naquele ano, meu pai não pregou nenhuma peça na casa de praia, estava muito diferente: ainda sorria, fazia piadas, tentava vez ou outra ser o pai amoroso que sempre era, mas algo o incomodava muito e o incomodava até mesmo, fisicamente, com uma ferida que tinha em sua mão, na base externa do seu dedo polegar, que ele coçava bastante, sempre que estava nervoso. Não era nada grave, segundo o doutor Jurandir, mas precisava cuidar com pomada e não passava de um ferimento que estava infeccionado. O problema é que esse ferimento meu pai nunca contou como conseguiu e naquele dia, eram nossas férias de julho, estávamos em frente a fogueira improvisada na varanda da casa e todos perceberam que meu pai estava introspectivo, coçava a ferida em sua mão e vez por outra espantava moscas que vinham incomodá-lo. Olhava para a fogueira, bebericava a cerveja e vez por outra ria de uma ou outra história.

Até que um de seus irmãos, o tio Alfredo, perguntou o que ele tinha e ele disse que nada e disse que só estava com muito sono e levantou para dormir. Todos estranharam, duas coisas: a primeira que meu pai fora liberado mais cedo para as férias de julho e a segunda coisa era que em geral ele não estava comentando os casos da rádio, mesmo os programas que não iam ao ar, meu pai contava com grande dramaticidade. Era como se ele estivesse escondendo algo de nós. Meu tio então levantou a hipótese de que ele estaria preparando um suspense para o seu próximo susto a qualquer momento – e foi por essa razão que nenhum de nós se surpreendeu quando fomos deitar e não encontramos ele na sua cama. Comentamos todos “tá certo Gustavo, nós já entendemos”. E dormimos.

Mais tarde naquele dia, depois do almoço, demos por falta de meu pai, que não voltou para dormir e nem sequer deu notícias e começou então a ficar preocupante a sua demora. Tio Alfredo insistia na ideia de que ele preparava o maior susto de nossas vidas e nós ríamos, mas ao mesmo tempo não conseguíamos deixar de sentir preocupação, sobretudo, quando começou a anoitecer e meu pai não havia dado notícias.

Minha mãe, depois de ligar muito, enviar mensagens, já estava com a voz embargada quando gritou para o meu tio que aquilo não era mais uma brincadeira e mesmo que fosse, era uma brincadeira de extremo mau gosto. Então resolveu chamar a polícia, que fez buscas no local, indo até o mangue com lanternas e chamando pelo seu nome.

Meu pai conhecia o mangue como ninguém: sabia esconder-se entre as árvores retorcidas e fugia bem das picadas de muriçocas e abelhas, arapuás que grudavam no cabelo e tentavam penetrar em nossos ouvidos. Apesar de ter vivido boa parte da vida na capital, era visivelmente apegado com a casa de praia – ele mesmo caçava caranguejos e em muitas de suas peças que pregava, arrancava suas patas e criava espécie de luvas com as patas cheias de pinças, grudadas com a lama barrenta em sua mão e, nos últimos anos sentíamos de longe o cheiro que emanava do mangue e pensávamos “ou está cheio ou o Gustavo tá se aproximando imundo daquela lama”. Fato é que, apesar das buscas, que envolviam até mesmo um helicóptero, não encontraram meu pai. 

Passamos a noite em claro e estávamos esperando o almoço ser pronto para mais uma rodada de buscas, dessa vez, nos dividiríamos a procurá-lo pela praia e pelo mangue, quando observamos que a casa estava estranhamente coberta por moscas. Em geral elas sempre estavam lá, mas especialmente naquele dia, elas não só estavam cada vez mais ocupando o espaço, como estavam incomodando pela insistência, pelo som e, aos poucos começávamos a ficar enojados de observá-las cada vez mais e maiores, com seus grandes olhos e patas, e asas, e trejeitos. Como se zombassem ou planejassem algo contra nós, esfregavam suas patas e começavam a se acumular de modo que desistimos do almoço.

Decidimos almoçar em um restaurante próximo, na estrada e observamos de longe que a casa estava realmente tomada por moscas. A princípio, achamos estranho e minha mãe teve um mau pressentimento, mas não falamos mais sobre isso.

Era por volta de 1 da tarde, quando na estrada vimos um homem que caminhava lentamente, aparentemente sem destino e cuja altura e corpo, lembravam o corpo de meu pai. Freamos os dois carros bruscamente depois de passar por ele, mas víamos pelo retrovisor que o homem estava com um aspecto estranho, como se estivesse coberto por algo, como algo não humano e quanto mais se aproximava, maior era o desconforto e o mau cheiro que exalava, assim como um som familiar, que, conforme identificamos, quando se aproximou de um dos carros, vimos que era de um enxame de moscas. Minhas tias gritaram quando o corpo coberto de moscas se aproximou do carro e aceleraram, batendo em nós, que estávamos na frente – o homem coberto de moscas que havia segurado no carro caiu com o arranque. Com o impacto, todas as moscas que cobriam o seu corpo, voaram numa nuvem que se esvaiu pelo céu e, coberto de feridas purulentas e buracos, dos quais saiam inúmeras larvas e pus, descobrimos ser o corpo de meu pai, que estava inteiro coberto de buracos, como um formigueiro e, mesmo seus olhos, havia sido consumidos pelos insetos, que ainda voavam em retirada para a enorme nuvem que se formava no céu em direção ao mangue.


[continua]