segunda-feira, 30 de abril de 2012

Poema Amigo Solidão

Para aqueles menos de meia dúzia 
de gatos pingados, tão tãos.

Se eu precisasse de mais amigos
eu teria que chorar bem mais
do que preciso todos os dias
nessa luta diária em se reconhecer.

Se eu tivesse mais amigos
eu bem poderia chorar,
abraçar cada um, puxar bochechas,
se tal não fosse tão bobo.
Se não fosse tão bobo,
eu teria mais amigos.

Mas,
se eu quisesse mais amigos
eu estaria perdido --
que vocês,
mesmo poucos,
já são todos,
já são tantos,
são tão muitos
que sequer eu poderia
num abraço enlaçar.

eap

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Nadar

Naquela hora eu sequer me preocupei com o motivo. Atinei apenas, que contanto eu ficasse ali deitado, tudo estava bem. Minha garganta coçou, eu tossi, uma gosma purulenta. Sangue, pus, catarro, sei lá. Fechei os olhos, sujei minha cara. Com um tempo a dor vai passar. No meio do trânsito, as pessoas buzinavam, sem nenhum movimento meu, apenas a minha perna, que se mexia sem que eu quisesse. De repente tudo até parecia fazer sentido. Falei que não havia nada. Só o mesmo céu que nos recobre, aliás, céu não: infinito cor de infinito, extenso infinito por todo o infinito infinitando, infinitante. Quem fez, não sei que motivo ou razão teve. Talvez meu rosto não fosse lá essa maravilha toda de ser apreciada; o fato, talvez, de estar fumando, repulsa ao meu tamanho, deste tamanho, fumando? Como dizer nos olhos deste rapaz que eu tenho vinte e um anos de. Vida. Morte agora. Vivi vinte anos para morrer. Duas décadas onde me perpetuei por algum tempo em perguntar para as paredes por que não em tal época, por que não de tal maneira. Tudo beleza. Quase gritei de dor, mas o ímpeto do pescoço se fez inútil, como todos os movimentos que dei desde o primeiro chute na barriga de minha mãe, desde o primeiro passo, à primeira palavra, até o dia em que amei, odiei, matei, algum animal, sei lá, feri certos sentimentos, pessoas de quem eu tinha apreço, de repente não tive mais, como deitar-se neste lençol de asfalto liso. Complicado viver. Mais fácil morrer. Olhe você: parado, tranquilo, cerradas pálpebras, sem obrigação de ter pressa, sem obrigação de ir a lugar nenhum, fazer nada, fazer tudo -- eu diria, nadar, tudar. Sequer esperar. Não espero nada, embora alguém esteja gritando por uma ambulância. Minha calça parece tão desnecessária, desprovida de utilidade -- inútil como tudo. Queria estar nu. Uma formiga passa pelos meus dedos, uma barata, não vejo. Só ouvi o grito, o baque veio depois, diz alguém, e eu achando que tivesse sido o contrário. Contração involuntária: meus olhos se abrem novamente. Tanta gente, meu deus, tantos rostos, e eu, que dobrara a esquina me sentindo tão só, tão solitário, o cigarro, meu único companheiro, e meus botões, com quem poetava, e meus pés, passos rápidos, sem pisar em nenhuma linha -- inútil, como tudo. Eu queria tanto que essas pessoas me amassem de verdade. Ou não, queria tanto que elas me deixassem pra morrer, como sempre nos deixam. Uma ambulância chega, põe-me sobre uma maca -- essa porra estava aí o tempo todo? não importa. Nick Cave fica na minha cabeça cheio de ternura devaneando seu barítono meloso, e vejo que contradição, ou que grata surpresa aquela música em minha cabeça, sua letra, que diz, que people ain't no good, enquanto todos se desmedem em cuidados em me pôr confortavelmente dentro da ambulância. Tudo inútil. Eu queria poder abraçar minha mãe, meus irmãos, meu filho, minha ex-esposa, queria tanto pedir até, quem sabe, desculpas. Tudo inútil. Queria matar meu pai. Tudo inútil. A voz diz alguma coisa, entendo como. Tudo inútil. Vai morrer. Tudo inú

eap

Nick Cave and The Bad Seeds -- "People Ain't No Good"

domingo, 22 de abril de 2012

Dois Ratos

Eu lembro ainda que meu pai adorava tentar me fazer não desistir das coisas contando aquela fábula idiota dos ratos que caem dentro de um balde de leite, sei lá, e que um desiste e morre, e o outro transformava o leite em nata. 

O problema é que meu pai não percebia que também ele era um rato morto -- a vida, de cruel, da maneira como eu e meu irmão mais novo somos diferentes também assim foi com meu pai e meu tio. Hoje, estou fodido, sem emprego, sem dentes, sem um tostão no bolso e com quase trinta anos ainda na casa de meus pais, meu irmão, mal saiu dos cueiros, vinte e sei lá, já casado, com um bom emprego, filhos, casa própria e com todos os dentes brancos na boca.

Meu pai é um perdedor, assim como eu, talvez por isso ele não se chateie de verdade e até me ame um pouco mais -- nós bebemos juntos, ficamos perdendo horas a fio a conversar sobre tudo, ouvindo seus velhos discos, enquanto ele coça a perna prejudicada. Vez por outra meu tio vem, conversa, e vejo nele meu irmão -- é quase insuportável.

O problema é que para o meu pai, a história acaba ali, e pronto, o ratinho que saiu, será que se deu bem realmente na vida? Que gato não lhe teria posto na boca só pra saciar a fome no dobrar da esquina? O fato é que o ratinho que morreu cansou-se de lutar, ou, repente, deu-se conta de sua condição de rato -- você é um homem ou um rato? -- e por isso, levantou os braços e deixou-se afogar. Quão longe foi o outro? E meu tio, ri-se bastante dos descasos de meu pai, o que me provoca certa repulsa por comportamento tão subserviente, em se maltratar, meu pai, contando aquelas histórias.

Sabe aquele poema do Pessoa que diz que nunca conheceu ninguém que tivesse levado porrada na cara e que todos os amigos dele são bons em tudo? Meu pai é o avesso quando vê meu tio. Ele libera uma cédula, com dó de meu pai, o que me dá mais nojo.

Nunca disse isso a meu pai, ao invés, dava-lhe cigarros que eu comprava com o seu dinheiro, e, vez por outra a delícia do leite nos solve os pulmões -- e ainda por cima me dá o dinheiro que meu tio deu a ele.

eap

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Repuxo

Não. Tu não devias ter pulado de volta
do abismo profundo em que te joguei.
Não. Tu provavelmente é cinza remota,
memória torta como coisas que sonhei.
Não. Tu não tens que tomar de mim
a noite de sono outrora perdida em abandono.
Não. Eu te nego, mesmo que em dor
se enlace meu peito de tanta melancolia
sei que já já, mais dia menos dia,
exorcizarei-te novamente de minha cama --
Sai, que não é teu meu pensamento!
Sei que agora nele estás, mas é tontura
lamento.
Não. Tu não poderá de mim receber nenhum
trocado de amor miserável, sequer a torpe
atenção que mereceria uma puta.
Não, eu repito, para que alguém me possa
acudir os gritos de minha boca que,
convulsa,
se estende pela madrugada em martírio
pelo pensamento tanto negado, apunhalado,
queimado e reduzido ao pó de que nunca
deverias ter saído.

ac

-

Meu deus, por que fizeste-me santo,
tão santo, a ponto
de duvidar de todo capricho teu?

eap

domingo, 15 de abril de 2012

Ai, deus, quem dera eu fosse mulher!

Existe uma frase que diz que
homem que é homem não tem
dúvidas nem se indecide
diante de nada.

Entretanto, eu repudio o homem,
seu status,
seu furor,
a lei que o obriga
a ser um,
a força,
a virilidade do homem.

Ai, deus,
quem dera eu fosse mulher!

Cruzar de pernas,
movimento livre,
riso,
mãos soltas,
uns braços,
abraços,
a voz cadenciosa,
o corpo amolecido.

O olho na rival --
só não mata
apesar de fazer mal.

Apenas promessas de ser
aquela que muda a vida do início ao fim.

Sinto que há homens,
que riem pelas minhas costas,
ante a verso tão... livre.

Mas esta gargalhada,
é outra prova
de que nem por ser mulher
eu amaria um homem.

eap

Crimes de Autor

Um professor falou que deveríamos ter histórias para contar, e disse mais: que as maiores literaturas do mundo são feitas em países onde morreram milhares de pessoas, citou, inclusive, dois exemplos claros disto: a Rússia e a Alemanha. E complementou,

-- Querem fazer boas histórias? Matem pessoas.

Não pude discordar. E fiquei pensando que seguia o caminho certo, falava de mortes, de mortos e de morrer. Um dia vi que escrevia nesta temática e tive medo que as pessoas que porventura lessem os textos confundissem com um autor que repetia temas, histórias, que calcava o sentido das histórias na narrativa fatídica. A editora para a qual escrevia adorava, mas eu queria ser bem mais que um mero escritor de livros pulp fiction que vendem nessas bancas vagabundas do centro -- estudei oito anos para nada? Sequer usava meu nome. A editora patenteou meu pseudônimo: John Cole. John, de John Coltrane, Cole, de de Nat King Cole, meus músicos de jazz favoritos.

Olhava os jornais com relatos de mortes, com assassinatos macabros, tudo aquilo me inspirava, como se o escrito jornalístico penetrasse na minha mente e eu começasse a labirintar pelos crimes; como fosse eu.

E no entanto essa concepção me subiu a cabeça de tal maneira que mergulhei de vez no conto psicológico e, afogado nas emoções profundas dos amantes e adeptos da catarse e da epifania, acabei por grudar-me a esta forma bajuladora e ultrapassada -- na verdade, nada da arte morre, apenas se transforma, se renova, se aproveita do que já foi feito e mescla em segredos de liquidificador, batidos todos nas misturas das letras, o resto, fica por conta da mão do autor.

Consegui uma editora que me deu notoriedade. E as histórias pipocavam suficientemente. Dois anos de euforia, dois livros de contos e um romance na mesma linha.

Minha mão, porém, embora tenha se dado com a nova concepção de fazer histórias, exorcizou alguns fantasmas, entretanto criou outros, que foi o fato de não poder mais escrever. O papel em branco era alimentado pelas parcas palavras que eu compreendia ter sentido, mas, na cabeça, era tudo enrolação. Não acreditei em nenhum instante no que escrevia. O cesto de lixos amontoava tentativas. As canetas perdiam sangue -- e era o meu sangue. A editora ligava, cobrava, clamava -- onde o novo livro? As unhas muitas roídas. Os cigarros muitos por dia -- tudo em abundância, menos ideia e inspiração para dissertar.

Um dia, porém, bebia num bar, quando se achegou a mim uma moça jovem, com um livro meu em mãos e conversou comigo muito tempo. Disse ser fã de meus livros. Agradeci, lisonjeado. Mas ela não conhecera John Cole. Graças a Deus. Baforava seu cigarro na minha cara -- sabe ela que gosto disso?

Tive, pelos seus sinais, a certeza de que ela queria que dormíssemos juntos -- uma mulher transpira diferente, se move diferente, sorri diferente, liquida seus fluídos diferente. Eu posso ver pelo lábio vermelho vivo entumecido de saliva o que ela deseja de verdade.

Fomos ao meu apartamento. Viu pouco ou quase nada do que nele havia, os olhos fechados só procuravam tatear as certezas do meu corpo, meu pau na sua mão, seus peitos nas minhas, uma raiva em retirar toda a roupa, e o amor feito à pressa, e não sei ainda qual sentimento forte, mas, enforquei-a com força, a tal ponto que sua língua saiu fora da gaveta, e lá ficou, os olhos vermelhos, saltados, esbugalhados, gordos feito os de um porco.

Não.

Sequer me desesperei. Sabia bem o que fazer. Enchi a banheira com um galão de ácido fluorídrico há muito esquecido e coloquei o corpo cuidadosamente na banheira. Observei o corpo borbulhar lento, até ser diluído numa pasta amarela cheia de pigmentos vermelhos, que borbulhavam até tomar todo o líquido, e a substância resultante, um líquido grosso e fedorento, reagiu com um pouco d'água que pus na banheira, portanto, menos corrosivo, e, por fim, desceu pelo ralo. Olhei suas roupas no chão, ensaquei-as, guardei num lugar, vi seus documentos.

A velha face assustada na identidade.

Aí sim, veio o tremor. O ócio criativo desceu até a ponta dos dedos, e quando vi, comecei a produzir uma história aos velhos moldes. No mesmo dia, uma pequena novela fora produzida, enviei os originais para a editora que retornou contato dois dias depois, parabenizando pelo trabalho, que impressionou os editores, que viram uma mistura do meu antigo estilo pulp, entretanto com uma qualidade superior.

-- Até parece que foi você quem matou essa mulher!, disse o editor chefe.

E todos riram, menos eu.

***

Uma semana depois, estava num café. Vi o jornal que punha assim uma notícia:



Tomo o café, acendo um cigarro; lusco-fusco de luzes, uma moça senta ao meu lado. Ela tem um livro meu nas mãos. A velha face assustada dos crimes do autor -- a morte num beijo, a morte num livro.

-- Fuma?, acendo seu cigarro, ela bafora em minha cara. Sabe ela que gosto disto? E eu sinto, pelos sinais dela que ela quer dormir comigo. Sua boca, seus cabelos atrás das orelhas. Eu sinto, eu distinguo os signos femininos.

eap

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ai de ti, Judas

Ator é ser de mil faces – claro é – e, para Jesus, qualquer um seria o próprio, a carne da encarnação – correndo os riscos do sangue do cordeiro derramado no olho enquanto se tenta enxergar a luz divina – um holofote.
Sei disso, porque, no ofício de escrevente, há uma ponta e uma ponte de atuação: é um ser que não é nem sou; aquela dor que deveras sente de Pessoa. Enfim, assim é a arte.
Mas, por Jesus um ator clamava.
O papel dele, digo. E por esse Jesus, ele tudo fez: deixou longa e vasta madeixa escorrida pelos ombros durante todo o ano em que, na Paixão de Cristo de sua cidade, tivera sido Pedro. Na sua cabeça não entrava Pedro.
Pedro lhe parecia gordura e cabelos brancos, coisa que não tinha. Mas, em breve teria – já em sua certidão de idade lhe bateria as três décadas, e então, nem Cristo, nem nada. Lhe sobrasse a lembrança do Nazareno seria muito: o pai que na terra lhe deu o nome de filho – aquele ser esquecido!
Pedro, assim, não lhe parecia tão má ideia, tão mau destino.
Pela tela da tevê não poderia passar o esforço no pequeno teatro. Jesus, sim, seria ele!
Quisera assim o destino que não lhe fosse seu este papel – o Outro, ou, o enviado do Outro era seu papel. Anos de estudo, de esforço, de lágrimas sonhadas e derramadas com o esforço da arte para ser Judas! Poder-se-ia aproveitar ao menos a barba, os cabelos... É a vida.
Conformado ia ao seu devido papel.
– por acaso serei eu? perguntava bobo e patético, a fala mais importante – odiado por todos, tanto se lhe fazia ser ou não o melhor.
Cristo na cruz de madeira. Lágrimas de todos os devotos, de todas as ratas de igreja, terço correndo pelos dedos, mãos nos olhos e a voz de Deus retumbante nos quatro cantos do cenário improvisado no deserto da caatinga.
– pai, por que me abandonaste? grita o ator em júbilo suprema e a comoção quem sente é Judas, que entrará na cena seguinte, posto que chora, e todos, ao chorar, acham que é da emoção.
– perdoai, eles não sabem o que fazem! e enfim o suspiro, mas eis que a história, esta madrasta, não acaba na humilhação do ressuscitar do terceiro dia. Eis o nó na garganta e da garganta de Judas, presos por uma corda grossa, do salto triplo em direção à morte feroz – a vergonha da família, a magreza do cachorro leproso do quintal, o desiludido pobre diabo, o Outro.
A cabeça roxa pendia, e a língua, meio palmo, fora da gaveta.
O susto da imagem valeu pela preocupação com Judas. As vaias se transformaram em choro. As moedas de Judas caídas, pobre latão enferrujado: o desejo do homem; o cadarço no pescoço.

eap