quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

“O Instinto do Instinto Secreto”


 Para Afonso Abreu

– Três dias. Já fede daqui.
– Por tanta demora, supõe-se que a desgraça já vai longa, não é? Tinha razão. Ele não tinha ninguém.
– Provavelmente. Mas esse cheiro vai incomodar os vizinhos.
A porta batendo.
– Está esperando alguém?
– Não.
Olho-mágico: dois homens com coletes e à paisana olhando para o corredor. Mão segurando já o coldre.
– Que merda.
– Eu não entendo.
– Abra a porta, procure não demonstrar nervosismo.
– Que?, olha com desdém.
– ... Vou estar ali sentado.
Abre a porta, abotoando ainda uma camisa engomada; os óculos sobre o nariz.
Os policiais perguntam seu nome, ele confirma, senta, oferece café, ao que os policiais não aceitam, pois que é de rápida a entrevista.
– Só?, pergunta o policial gordo.
– Sim, sim. Moro sozinho.
– É... Então, o que esteve a fazer ontem à noite?
– Estava em casa dormindo.
– Soube de alguma coisa anormal acontecendo?
– Não... Ainda não soube de nada, pois que sempre tomo notícias do que há quando vou a casa de meu vizinho pela manhã, para esperá-lo ir ao trabalho comigo.
– Entendo.
– Que aconteceu?
– Estamos apenas averiguando.
– ...
– Algum incômodo em especial?
– Você alguma vez já o viu ou ouviu falar, fazer alguma coisa que lhe incomodasse? Fica calmo, disse o da voz sentada.
– Não na verdade. Trabalho o dia inteiro. Aos sábados e domingos durmo ou leio. Saio vez por outra apenas para resolver empecilhos do trabalho...
– Administrador?
– É... Toda aquela coisa. Reuniões, ações, relatórios, cobrar dos outros, os outros me cobram... enfim, é uma rotina estressante. Dá vontade de matar um às vezes, e riu.
– Não!, gritou aquele que estava ali sentado e ninguém via.
– Hm, disse o outro policial de barba, tomando nota.
– Por enquanto é só, senhor. Qualquer coisa que nos puder ajudar, aqui o nosso cartão. Nesse número o senhor vai poder nos contatar à qualquer momento.
– Sim, sim.

***

No carro os dois dão fungadas no talquinho.
– Que tu acha?
– Ora, aquele magrelo?
– Como assim? Foi um tiro.
– É, mas ele bem poderia nos ajudar... o prédio dele fica de frente para o outro prédio. O filho da puta preguiçoso do caralho, passa o dia dormindo. Risca o nome do corno.
– Tem certeza?
– Claro.
– O cara era importante. Tá com cara de passional. O marido da outra tinha histórico... Tava na cara que ia dar merda... O fulano arrancou os aparelhos dos dois, comeu a mulher depois de morta... Tá na cara.
– Quando sair a análise do esperma, vai se confirmar...
– Por que então os filhos da puta mandam a gente averiguar essas evidencias!
– Ah, larga mão de ser preguiçoso, porra...
– Vamo tomar uma?
– Simbora.

***

No apartamento o desespero do ego e do alter.
– Cê acha que eles desconfiam?
– Depois dessa cagada...
– Eu não acredito, eu não acredito! O maldito!
– Eu falei que tomasse cuidado e não se deixasse levar pela familiaridade, pela conversa fiada dos policiais...
– Que inferno!
– Não se descontrole, é apenas um gato!
– O gato era quase uma merda de parente! E, a culpa é minha! Deixava a porta aberta sempre! Só um animal! Um pobre animalzinho!, convulso choro balbuciado.
– Não vejo onde isto se encaixe... Se acalme... Ei, onde você vai?
– ...
– Ei, não faça isso! Não! Não!

[estampido seco]

eap

(talk)


(well... everybody just needs to talk)
hey, everything i know,
is just a little part
of a great party
that never happened in my life --
this just passed between my eyes
and I was on the floor,
kissing the flow of dirty footsteps
left of all our history

eap

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Versos Íntimos

eu que quis viver e abusar do absurdo
agora me dou de cara
com o mundo - e nunca tive tanto medo.

você tem um pedaço deste coração
e eu sou um poeta em pedaços...
quando decidirmos o que disto é mais importante
vejamos até onde isto vai chegar...

toda a minha história
é feita de poesia morta...
me pego pensando nisto às vezes
e pergunto-me, se é normal isto...
quando de repente, sou comovido
do sentido que procuro dar a tudo isto...

e eu que procurava abusar do caos e do absurdo,
hoje me vejo de cara com a calamidade de tudo,
uma prostituição incalculável de minha história -
meu corpo nu e renegado, chicoteado, queimado...
brasa dilacerando a carne...

quem me daria chances,
quem seria assim tão cruel?
quem poderia me dizer que sim
sabendo que eu digo não a tudo isto?

é o destino dos infelizes,
dos pobres mortais -
dos pobres que morrem...

aquele zumbido surdo do caos
uma mosca pousando num copo de leite
ao som do violão encostado na parede,
cheio de poeira e de música perdida, vadia,
reles, nota alguma (nota zero)

o homem da poesia torta, movediça.
o ser de mãos calibradas para o erro,
o ser que se posiciona fraco, o ser-ou-não-ser
que entra à noite em desespero...

o menino perdido e sujo,
o menino que amava outros,
sem saber que o amor jamais salvou nada
e sim foi morto durante seis seis seis,
milhões de séculos...
desde o início...

eu só lamento não ser aquilo
que todos esperavam ser.

eap

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

In Random II - A Voz Muda

Do disco "Parklife" - Blur
Quando tudo enfim se desvanecer, vai sobrar só o resto da cinza dos cigarros, e eu vou estar lá pra ver os filhos da puta com a boca escancarada e fedida -- provavelmente terão suas vísceras postas ao sol para secarem mais rápidas e servirem de alimento aos urubus que vão adorar a carne que é podre antes mesmo de putrefar-se; quando eles tiverem um resquício de sentimento, vão entender que o que falo não é piada -- minha voz tem sentido, foi o que minha mãe disse, e tem dito, apesar de que, bem sei que muita coisa ela não entende, e no final, a culpa é sempre da mesma pessoa (das mesmas pessoas). Quando eu te disser isto novamente, daqui uns trinta tristes anos, em cima de uma cadeira de rodas, rabugento e cheio de doenças você vai provavelmente dizer que é castigo de deus, que é minha língua que faz meu corpo pagar, mas eu sei que não é isto, pois você terá morrido primeiro que eu, e iludido, cheio de sorriso na cara, pobre e fodido, achando que haverá um paraíso... [risos] Paraíso! Inferno ou paraíso é uma questão de que ângulo se observa o mundo... Mesmo eles, sabem que o paraíso é uma ilusão, tem apenas a moral em que se apoiar e iludir, e você estará neste momento em que eles dizem É assim, se vangloriando em mil aleluias e améns, por já ter sua lição de casa preparada antes mesmo de nascer, pois seus pais já estavam lá para lhe ensinar, e não me faça falar de seus avós... Não tenho dito que sou o melhor, não. Nunca direi isto. Sei, sabemos, todos nós (eu, você, eles) que eu sou o pior dos piores, pois sofro sem sentido (como vocês acham), pois sofro sem por quê (idem) e que me enraiveço de jovem... Que é de minha mente? Só eu sei. Se tivesse instrumentos à mão, não faria nada, mas tenho a impotência como uma faca encravada na garganta. Dou-te a direção. Aponto o dedo. Sabes bem, tens pernas e braços. E aí?

[o resto é silêncio]

eap

sábado, 24 de dezembro de 2011

Da Vida


Sabemos tão pouco da vida,
a ponto de não reconhecermos
o valor que a morte lhe dá.

eap

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

-

Sonhamos tanto acordados que esquecemos às vezes de fazer isto enquanto dormimos.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Corpo

body

Trago em teu corpo
uma poesia
feita e refeita,
aperfeiçoada por anos
de emaranhamento de tecidos
de glóbulos e órgãos,
pulsos emocionados
dum coração moluscular,
que bate,
e que não ouso nunca desenhar.

Na verdade, não trago nada,
a poesia nasce feita,
aprimora-se por si mesma,
e no final, resta deliciar-se
de ler e interpretar
cada parte do corpo
cada parte do todo.

eap

O Fruto

Antigamente conversávamos:
- onde está Deus?
- está no céu.
Mas, onde o céu,
Se não há céu?

Existe o espaço.
Infinito.
E onde o mistério?
Eternamente...?



eap

sábado, 17 de dezembro de 2011

Minimas VII - Theo

Theo, conversa vai, conversa vem, hora de se ir. Como não podia
deixar de ser, tinha que dar a última:

- Pois vai lá, Zé, eu passo lá... Tu não mora perto dum negócio que
é tipombar, né?
- ... vai se foder...
- Ei, mã, sério, o nome do bar, é o... como é mesmo ein?
- Sei lá...
- É o cupimbar, né?
- ...

*

Afonso não se aguentou: o hit do momento passou em frente aos dois,
- E a Fátima corococó, e o Estênio tofraco, e o Theo mu-mu-mu.
Theo, nem precisou pestanejar - menos ainda rimar:
- e o Carlito gulu-glu-glu.
- ...
Porque já dizia a filosofia dos moradores da Betel, batizados de betelistas:
Quem tem papai de apelido "Seu Peru", não abre a boca pra falar da mãe
dos outros.

eap

20 Verdades Sobre Poesia

Retirei alguns excertos de coisas que disse-e-não-disse um dia para algumas pessoas (ninguém) para que entendamos um pouco a diferença entre ler, entender e fazer poesia, de acordo, claro, com o que entendo por isto ser. Por isso, não vá achando que se não consegue ou não conseguiu quaisquer destas coisas que não se poderá ler, entender ou fazer poesia: há tempo para tudo neste mundo.

Mas sigamos em frente:

01 - Para se entender poesia, é necessário perder um pouco a alma a cada dia.
02 - Para se entender poesia, é preciso estar de peito aberto, sem mágoas nem feridas.
03 - Para criar uma poesia, é essencial, que o dizente tenha em si a alma pessoana - do poeta que finge tão completamente a que chegará a fingir que é dor a dor que deveras sente.
04 - Para se ser poesia, é necessário um bocado de açúcar, afeto e um tanto de sadismo.
05 - Para ser poesia, é necessário uma dieta de pão e sangue.
06 - Para se ser poesia, é preciso coração machucado, que goste de sal nas feridas, que sinta prazer em banhar-se de álcool.
07 - Para fazer a poesia ter filhos, vá ler João Cabral, Bilac, Bandeira, Rimbaud, Baudelaire. Vá ler Drummond, Cecília e Vinícius. Aproveite e veja também Chico, Noel, Pixinguinha e Cartola.
08 - Para fazê-la ter filhos, é preciso cruzar a sutileza do bater de asas de um beija-flor com a pata estúpida de um elefante viajante.
09 - Para se ser poesia, é preciso bem mais que uma rima rica, decassílabos e alexandrinos - por que não cabralinos?
10 - Para se ser, é preciso ser neguinha, é preciso ter cabelo de carapinha, beber cachaça, jogar capoeira e pedir a benção à Dona Menininha lá na Bahia de todos os santos. Oxalá!
11 - Para se ser, é preciso ser de todo mundo dentro de sua própria casa.
12 - Para se ter poesia, é garantido que se saiba e se fale abertamente do deixar a vida, acreditar mais na morte - sem tirar o olho da outra (e também, da sorte).
13 - Para se ter poesia, é obrigatório o direito de mentir, e o dever absoluto de imaginar - que a vida é pequena numa só.
14 - Para se ter poesia, é necessário o compromisso com a verdade, mesmo quando se mente, "se é que você me entende".
15 - Para se fazer poesia, é preciso ser humano, e é preciso ser bicho e planta também - já fui vento, já fui móvel, fui uma garrafa de cana e o seu Zé do armazém.
16 - Para se fazer poesia, é preciso não ser nada, nem poeta.
17 - Para se fazer poesia, é quando se mais precisa - e na verdade sempre, que ela está em qualquer lugar.
18 - Para se fazer, é preciso muito cuidado, zelo e paciência. "Olha a porta, se ela não te inspira, esquece que ela existe! Renegue-a!"
19 - Para se morrer poesia, é preciso que tudo vá pelos ares, que toda se exploda, e que, acima de tudo, não existam mais olhos, nem cérebros e muito menos corações.
20 - Para se renascer poesia, você irá criar onde quer que seja - vá lá ver Dante no inferno!

eap

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sobre Café e Cigarros

Eu te digo que não vou parar. Estou velho, cansado, cheio de contas a pagar. Qualquer dia desses me encontra você com a boca cheia de formigas numa esquina qualquer - e aí? Dá-me certo prazer, dá-me certo gosto - é a diferença entre estar vivo e estar morto. O paladar, o olfato. Estou morto, meus pulmões estão dilacerados, eu sei. Mas quem não está? quem não morrerá? Nunca conheci um ser imortal, e também, tem graça isso de ser imortal? É por isso que sorvo sem preconceito. Trago, aspiro, transpiro e enervo minha alma - se ela existe. Traga-me um café. O café isto também, em líquidos. Imagina-te num banho numa cachoeira de café. A negritude, só de pensar, me dá medo. É por isso que todos gostam da água: dá para se ver através dela e amá-la por ser o que é, é convenção isto de amar e preservar a água. Eu preservaria o café, os cigarros. Punha meus pulmões sobre uma grelha e comê-lo-ia. Os urubus, coitados, estariam esfomeados de tanto esperar. Mas meu coração, coisa de aço, como disse Cecília Meireles, não dá-se por vencido. Começa por se transformar numa bomba que se remexe e me mantém vivo, conquanto o cigarro vai se transformando numa brasa só, abrasando, acinzentando-se, e sendo poeira jogada ao vento. O gosto deste despedir-se de si mesmo dói no peito, e para chorar a alma desesperada dos aflitos, tomo uma xícara de café. Quando eu movo, sentido horário, a colherzinha, misturo o açúcar, vejo a espuma se dissolver no líquido espesso, livre, fora as bolhas. Milhões de bolhas juntas - apenas vivendo de observar enquanto degusto o café. Estalo de língua e eu lembro de outros cafés que tomei mundo afora. Minha mãe, aquele café forte, amargo, sem açúcar, quase - outra fumante, minha inspiradora do que sou; minha avó, um café ruim, amargo como fel e vingança, feito para quem masca fumo; o café de meu avô, aguado, açucarado, ótimo para nada. Eu pergunto quanto tempo mais durarão meus pulmões, cansados de respirar o ar puro da nossa cidade cinza. Meus lábios entumecidos de lama, e quanto mais eu penso em mim, mais raiva tenho dos outros - café, café, café, mais uma xícara, que eu posso dormir quando morrer. Vamos atravessar um período de secas intelectuais e este ato será mais um a se extinguir. Falaremos do asfalto e do concreto, da fumaça palpável, do cheiro que entra dentro da neblina (um lobo em peles de cordeiro) e ilude essa cabeça ansiosa - e não me venha você dizer que meu cigarro irá um dia me matar. Vamos, sente aí, tome uma xícara de café ao menos.

eap

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Gosto de Cereja

Talvez o céu fosse uma grande e única labareda de fogo azulado
que lembraria nossa vã vontade de sentar e observar
a paisagem e achar bela, como nunca - como não é.
E, bem, é mais fácil: conversas à atormentar cabeças,
loucas por uma bala atravessada, sim, bem no meio dos olhos.
Quando por fim, deixarmos de tanto nervosismo e comoção,
sejamos um pouco mais corajosos para não sermos tão ingênuos
em considerarmos a nossa espécie humana digna...
O ser e o não ser nunca estiveram tão decididos do que ser,
e não é necessário nenhuma ironia ou aforismo para que se chegue
a resposta que tenho a dar.

eap

domingo, 11 de dezembro de 2011

O Estrangeiro de Albert Camus

Ao ler o primeiro parágrafo de O Estrangeiro de Albert Camus, temos uma noção do que virá pela frente. A frieza com que recebe a notícia da morte da mãe permeará todo o livro em diversos âmbitos, os quais o livro percorrerá, o sexo, as amizades, o assassínio, a vida e a morte.

"Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo. "Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos." Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem."

É fácil identificá-lo no olho do furacão existencialista como uma das obras mais famosas, juntamente com o livro do compatriota, Sartre, O Ser e o Nada, entretanto o autor não quisera este rótulo de existencialista ao seu romance, que se derrama todo na estética do absurdo - estilo principiado com o escritor tcheco Franz Kafka, em obras como O Processo, O Castelo, entre outras. O Absurdo nesta obra está na máquina estatal que oprime a liberdade do personagem central, Mersault, que por não ver razões em nenhuma crença, nenhuma fé, nenhuma ciência, é assim tido como livre, e esta liberdade acaba por conduzi-lo ao seu destino final, que se chocará com esta máquina. Esta noção do Absurdo está no modo como, à maneira do Sr. Joseph K., de O Processo, Mersault é tratado em seu processo pelo assassinato de um árabe, como fosse alheio ao que ocorria ali na sua audiência. Além de se utilizarem da frieza com que fora ao velório de sua mãe como prova irrefutável, aos olhos de um promotor carrasco, de sua psicopatia, senão isto, de sua vontade e intensão de matar o tal árabe.

Entretanto, o protagonista não tinha qualquer razão para fazê-lo, e para ele, tanto se lhe fazia o que iria acontecer à sua vida. Existir é apenas isto que encaramos todos os dias: nascemos para morrer. A existência, puramente, ao homem, deveria pautar-se na liberdade do indivíduo, mas esta liberdade é ofensiva ao Estado, e é aí que Liberdade e Absurdo são faces da mesma moeda, de acordo com o pensamento camusiano.

Pouco sei sobre a filosofia existencialista. Mas o fato é que é explícito o jogo das ideias destes homens nas pouco mais de cem páginas que permeiam o romance, que está, ao lado de O Processo, entre os cem livros do século XX. O porquê é simples: está ali explícita a forma como a máquina estatal controla a liberdade do homem a ponto de encurralá-lo contra a parede e fazê-lo digerir as vontades e deveres impostos por eles.

Mas, no que tange ao modo como Camus lidou com a literatura, é um livro de facílima leitura. Períodos curtos, ideias jogadas enxutas nas páginas do livro, e, acima de tudo, um assombroso jogo que permeia a segunda parte do livro, que seria o encontro de Mersault com o estado - já que a primeira parte seria o usufruir de sua liberdade, o que nos mostra o sexo, o banho de mar, os passeios, etc.. É um livro popular. Tanto, que sua influência fora dar de cara com a banda de rock gótico inglesa, The Cure, na letra da canção "Killing a Arab" - que à época fora má interpretada. Além de uma adaptação cinematográfica pelas mãos de Luchino Visconti, em 1967, com Marcello Mastroianni no papel de Mersault.
Killing a Arab - The Cure

É uma leitura obrigatória para quem procura respostas a questionamentos sobre a sua própria liberdade, e, parafraseando as palavras de Arthur Dapieve "é uma espécie um tanto cruel de livro de auto-ajuda".

eap

sábado, 10 de dezembro de 2011

Desgracida de Dalton Trevisan

Trevisan pode ser considerado o melhor contista vivo de uma geração promissora que veio logo após aquela efervescência do pós-45, que se propunha a ser diferente. Trouxe consigo uma pá de companheiros e fez ainda outros amigos ao sair de sua progenitora Curitiba para o Rio de Janeiro, onde ficaria amigo de Rubem Braga, desde então, de lá para cá, Trevisan, cada vez mais recluso vai aperfeiçoando o minimalismo com que cria seus personagens e fatos, pitorescos e engraçados, sem renegar, claro, os seus evidentes influentes (Tchekóv é um deles, Machado é outro). Desde meados da década de 50 seu talento é reconhecido, e antes da explosão de ótimos contistas na década de 80 (a exemplo de Caio Fernando Abreu) era tido como o nosso maior expoente do gênero - um mestre.

O que tudo isto tem a ver com "Desgracida", sua mais recente antologia de pequenos contos? Tudo. Aqui podemos entender como e porquê o "Vampiro de Curitiba" tornou-se um dos mais respeitados contistas contemporâneos  ao lado de Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyolla Brandão (apenas para citar da mesma época e ainda vivos).

O volume, até que pequeno (220 páginas), reúne aquilo que o escritor misantropo sabe fazer de melhor: contar os casos do cotidiano desta cidade, expressionista muitas vezes, que é a cara de seu autor  pode-se dizer que Curitiba está para ele assim como a Bahia está para Jorge Amado. Trevisan transpõe as pequenas histórias para a sua visão de mundo e de literatura formando um mosaico de figurinhas, que são Joões, Marias e Polacas, todos, endiabrados, cruéis, marginalizados, caquéticos, imundos, e, pasmem, até líricos e humanos  diria desgraçadamente humanos ainda mais com todo o erotismo cafajeste, tão próprio de suas obras.

Tudo isto somado a linguagem coloquial, típica do povo curitubano, que Trevisan soube tão bem adaptar ao seu estilo minimalista (do clássico "Ah, é?", passando pelos perversos "Dinorá" e "234" - que tive a oportunidade de ler), somadas à textos de cunho altamente psicológico, no que tange às atitudes desmedidas de seus personagens, e falando lado a lado com "a ralé" curitibana, sob o signo do sofrimento e da crueldade. Fora isto tudo, vemos as piadas, os aforismos e poemas-conto, que já são de praxe do autor.

Mas o diferencial de "Desgracida", e que, muito provavelmente, o fez vencedor do Prêmio Jabuti deste ano na categoria conto [que o autor já havia vencido com "Novelas Nada Exemplares" (1960),  "Cemitério de Elefantes" (1964), "Ah, é?" (1994)], está na segunda sessão do livro, que sucede as "Ministórias", que são as "Más Traçadas Linhas", que reúne cartas que o escritor dirige, afetuosamente, a Pedro Nava, elogiando-o, e dizendo, sem meias medidas, que compara-o a Proust, e que seria até melhor, já que "não é chato nunca", além de cartas a Otto Lara Resende, onde critica, se bem entendi, Grande Sertão: Veredas, além de salientar, citando autores por quem tem predileções, tais como, com bastante frequência, Machado de Assis (a quem chama "Machadinho"), Léautaud e Anton Tchekóv.

O livro, que é uma amostra da competência de Trevisan ao longo de sua carreira, guarda boas cartadas, como o conto Iluminação, que guarda um tom memorialista e certa epifania na nesga de perna branca que surge na perna de uma polaca, e ainda Marishka, que é um canto louco de amor à uma mulher fatal - aqui a referência cinematográfica à mulher do conde Drácula. São essas, duas joias raras em meio a este volume, que pode ser dito como um produto notável de uma grande carreira construída sem frescuras, demonstrando que em time que está ganhando, e muito bem, diga-se de passagem, não se mexe.

E, às suas palavras, "despeço-me com um piparote".

eap

O Estrangeiro - Trecho

" [...] Voltava a me esforçar para mudar o rumo do meus pensamentos. Escutava meu coração. Não conseguia imaginar que este barulho que me acompanhava a tanto tempo pudesse um dia cessar. Nunca tive uma verdadeira imaginação. No entanto, tentava imaginar um certo momento em que a batida desse coração não mais se prolongaria na minha cabeça. Mas não adiantava. A madrugada e o recurso estavam sempre lá. Acabava chegando à conclusão de que o mais sensato era não me tentar refrear."

(CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Editora Record - Rio de Janeiro 2011 - 32ª ed., Pg. 116)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Mulher Amada - E Uma de Trevisan

Meia duzia de tabefes, já cai toda chorosa no chão a mulher,
vontade de morrer, matar, irrompe em prantos a flor murcha,
-- João, por que tu não me deixa em paz?...
O dentinho de ouro mordendo o beiço grosso, ainda a unha
cravada no umbigo cabeludo -- e ainda cheira,
-- Ia eu saber viver sem esse...
-- ...mulher amada já não sou!
-- ...assado de panela todo dia? ainda mais roupa lavada?
-- ...bjeto sexual, só...
-- Não fosse isso, voltava pra mãe...
-- Mas tua mãe já morreu, João.
Triunfante musgo na ponta do canino -- um alface,
-- Então o jeito é aguentar, desgracida.


eap
 
 A Dalton Trevisan por seu "Desgracida".











"Só de vê-la -- ó doçura do quindim se derretendo sem morder -- o arrepio lancinante no céu da boca."


(TREVISAN, Dalton. Ah, é?. Editora Record - Rio de Janeiro. 1994, Pg. 15.)

sábado, 3 de dezembro de 2011

Vergonha

-- Não quero porque não quero e pronto, mãe.

-- Deixa o menino ir.

Não se sabe ao certo. Mas o que é certo é que tinha medo. Não gostava. Tinha seus segredos, e quem não? Pior era de se saber o que era, depois via o menino, ia falar para a mãe, que já é sabido, gostava de implicar, coruja que era. Seria capaz de impedir que fosse para lá -- e não fazia outra coisa, depois do trabalho, para casa, e ainda tirava uma boa quantia para o aluguel, que ajudava, e ainda assim não dava, mas não deixava de comparecer, bom filho que era. Ia à casa da família de seu pai, aquele escroque que os deixou -- a mãe sempre perguntava: Notícias? Mesmo que dissesse que não, era sabido, coruja que era, que desconfiaria, e com razão, família é família, não é de se confiar. Aturava de tudo, desde a música aos cabelos, tudo era comentário, crítica, o caralho. Mas ia. O que lá o aguardava, não compensava de todo, mas era já um alívio breve, uma quase respirada de um ar, mais ou menos, puro. Acabou o menino que foi mesmo. E ficou inseguro, cheio de medos. No caminho, disse ainda no ouvido,

-- Fique lá em cima, na casa de sua madrinha, não desça por nada... E foi fazer aquilo, que lhe era vergonhoso, que lhe pesava, que lhe doía tanto fazer... Mas precisava. Ou era isso, ou não ir onde queria, no sentido literal da palavra. Já que se pagava para viver, para caminhar, para ir a qualquer lugar... E precisava tanto ir, sair, pegar uma condução, ônibus, busão, coletivo, sabe lá, qualquer coisa, para sair, caminhar, respirar, não ver tanta coisa ruim, chateações absurdas, que a sua vida lhe tinha imposto de uma hora para outra. Quando deu por si, abriu a porta, e quem do outro lado não estava, senão seu irmão, que observou atônito a vassoura nas mãos de seu irmão, que não teve muita reação, senão dizer, Entre... o menino entrou e olhou, meio assim-assim para o irmão que segurava uma vassoura numa mão e na outra um espanador, sem camisa, cansado, suado, desgastado, como não poderia deixar de ser... Na verdade, pouca coisa entrou em sua cabeça. Estava preocupado com outras coisas que seus onze anos lhe diziam ser preocupantes, mas sabia, ali dentro, na esquina da cabeça, que aquilo não era bom. Sentiu qualquer coisa de angústia, e saiu andando atrás da tia, que por ali perto estava, mas, era como se o chão tivesse estado a pairar no ar... E por aquele instante os irmãos pareciam estar agora a se reconhecer.

Na volta para casa, ambos estavam exaustos, um de tanto brincar, outro de tanto estudar e trabalhar, ganhar, sabe lá que quantia pífia àquela humilhante situação... no carro da outra tia, depois que chegaram, não deram palavra. Num dado momento da noite, quando a tristeza talvez bata de forma mais pungente, ou o frio da noite se sabe mais denso, o irmão mais velho disse ao irmão mais novo, olhando para a tevê,

-- Não fala nada pra ninguém.

Não iria precisar. Vozes além lhe diziam que alguma coisa estava errada, mas que não se preocupasse: o silêncio era um caos organizado. Estava ali, mas descansando, talvez aguardasse o momento certo para se dizer, e se dir-se-ia disto, um passar na cara, quando as lições de moral não tardassem, teria argumento à ponta da língua.

eap

Garotos e Garotas -- Parte 1

Ele era quase todo felicidade, conquanto não mexessem em seu calo: nada de relacionamentos. Seja de amigos, parentes, seja de amores, pessoas mesmo ausentes. Quando em vez se pegava em pé de guerra com a memória. Tudo era demais: pessoas demais, responsabilidades demais, vida demais, coisas demais. Mas se no fundo era feliz, então tudo bem. Até aquele dia, era claro que sua vida se guiava num nível de constante bonança. Quando, naquele dia, justamente naquele dia, em que as horas mortas se sobrepunham por entre a gritaria do povo, gente feliz demais, mais que ele, que era quase feliz, mesmo sendo notado em sua cara morena uma tristeza messiânica, naquele dia, veio-lhe um coração frangalhado de desassossego apaixonado. Ele saberia como dizer sim, mas era tão mais velho, que sua tristeza se camuflou de um espanto, de um temor, de uma angústia, e de repente, uma repulsa. A superioridade masculina. Daí feliz. Daí orgulhoso. Embora inconsciente. Era coisa de se ser homem. E em meio a folia, da balbúrdia dos felizes alunos em integração, veio a garota com ar de inocência. Quatro anos, era demais. Além do quê, não é lá essas... Não. Por que, por que, por que, a martelar, e, dois caminhos: sim, você não é linda, e não, eu não quero, você é muito jovem -- o que acarretaria desenlaces que sua mente juvenil jamais se permitisse conformar. Disse o que disse, com dó de lágrima derramada -- é pena, essa não era a reação que esperava. Preferia raiva, ódio, desejo de morte... Mas tristeza não. Tristeza não se brinca. Ele bem sabia que tristeza não era coisa de se brincar. Fora para casa sem mais na cabeça. É de se morrer? Não... Ano que vem capo fora, já nem aqui nem lá... E assim por diante.

E,a,p'