quarta-feira, 19 de outubro de 2022

tem que (acabar)

Frusciante (1992-1997)

Tem mais é que se acabar
Toda forma de esperança 
Toda forma de pujança 
Tem mais é que fenecer

No feno do dia a dia

Que rola e desenrola

Tem mais é que esmorecer

Nos muros que miram

Que mio, que mil de miró


Tem mais é que des-ser

E botar pra descer

Toda destra forma e desforma

E tem que não ter


Porque eu nasci pra morrer

E não nasci pra semente

Porque eu nasci pra sofrer

Sofrer e morrer que nem gente


Mas se não for pra merecer

Que seja eterno e sem hora

Pra gente ficar mais um pouco

Porque eu não quero ir embora


Tem mais é que falecer

Quem vive da vida dos outros

Tem mais é que merecer

Um palmo de terra um palmo no outro


Porque não dá mais pra se dar

Sem senso sem sentido

Sem cheiro sem paladar

Sem boca de desvalido


Tem tudo pra me oferecer

Mas me nega e eu morro de fome

Eu fico tão triste e disforme

Que ano que vem talvez

eu não te devore


Mas vão te devorar por mim

Vão te abocanhar por mim

Vão te rasgar enfim

Porque o que você tem

Nem tendo dá pra ter


E dividir você não quer

Então Se tiver de tomar

Eu tomo, eu degluto, eu engulo

Eu cuspo e sou chulo


Eu sou triste e tô raivoso 

Me comprimem e eu não aguento

Não podem chamar as margens

Do rio de violento


Você tem que desistir

Porque eu sou bomba relógio

E quando eu explodir 

Você vai desexistir


Porque já passou da hora

Dessa brincadeira acabar.


domingo, 18 de setembro de 2022

o cronista de meus amigos

meus amigos estão cada vez mais distantes
e eu deles, também,
porque é assim que tem sido.
mas nada pode e nem será mais como antes.

caminhamos calados, taciturnos, reclusos.
vislumbramos na alvorada, com certo espanto,
a porta de saída, a poucos passos,
e tantos dos nossos já a cruzaram.

cada qual a sua maneira, toca como pode,
porque é assim que tem sido.

não sei ainda se caminhamos por querer,
ou simplesmente estamos sendo empurrados,
mas não deixemos de dar as mãos,
por favor, não deixemos.

tudo é triste e sombrio hoje,
mais que quando supúnhamos ser
os anos mais felizes de nossas vidas,
e hoje o desbotado dos dias embota a rotina.

sei que há um sabor amargo
em cada verso que tritura os dedos,
mas sei também,
que no finzinho dessa fruta tem doçura

pois, qual não é o gosto das memórias
que guardamos das calçadas quentes
sob a sombra das castanholas
e dos dias mais nublados?

marchamos como quasímodos,
levantados do chão.

esse sentimento, agridoce, na língua
fica pra sempre? queria saber.
ou no momento certo, cederá
ao melhor que podemos ter ainda?

"eu vou seguir o caminho do verme",
dizia uma música que ouvi na juventude,
e o cantor, à época, tinha a minha idade,
talvez certas dores, acabem sendo comuns.

enfiados no fundo da memória,
os rostos dos meus amigos não tinham
cabelos brancos despontando
e eu sigo sendo o cronista do fim.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Saturno Demora

O tempo corre facilmente,

Sem pensar nem sentir 

Os percalços do movimento -

Corre, e independe

Do que pensa ou pensamos de si.

Na velocidade com que passa

Rasga nossa pele

E joga em nossos cabelos

As cinzas das horas mortas.


O tempo voa sem bater asa,

Como voam os aviões,

Sempre como um pêndulo

Aproveitando-se das instruções 

Que outros homens, 

Em outro tempo,

Constataram pelo erro.

Qual não foi a engrenagem

Que destravou em mim

A memória de que o nosso tempo

Sempre corre pro fim?


O tempo viaja sem pressa,

Sem mala nem hora pra voltar -

Porque o tempo histórico do homem

Sempre passa mais devagar. 

Quanto tempo o tempo tem?

Quem decidiu que ele o seria?

Por que o sofrimento dura um ano?

E por que é como um raio a alegria?

Quanto tempo eu ainda tenho

Para responder essas perguntas?

Quanto tempo a vida dura?

E quanto vale o que a segura?


Conforme seja: o tempo varia:

Para a criança é a ansiedade da espera,

O dia que passa de hora arrastada;

Para os adultos é uma maratona

que sempre falta um tanto

Para a linha de chegada;

Para o velho, é uma caminhada,

Rumo a saída

que se deseja adiada;

Para o suicida

É uma surpresa esperada.


Mas grosso modo,

O tempo é o senhor das mudanças 

que pode demorar e demora,

Porque o tempo humano é pífio

E é uma página que demora a acabar

Mas ela virá:

Como um dia que, na enchente,

De uma enxurrada levará séculos embora,

Mas até lá, o tempo corre a conta-gotas,

Esperando esse rio que tudo arrasta transbordar.


terça-feira, 26 de abril de 2022

desabafo dos 30 e poucos

30 anos e o medo ainda é o mesmo de dez anos atrás:
todos os momentos que guardei
hoje são como momentos fugazes
e coisas que me pareciam antes
tão importantes
estão empoleiradas e empoeiradas
na estante dos grandes fracassos que acumulei
eu mesmo durmo neste espaço às vezes
agarrado aos sonhos de ser um poeta,
um romancista, um contista, um músico,
um diretor de cinema com assinatura própria.
hoje, a arte daqueles dias evaporou e paira sobre minha casa:
tenho o ímpeto de sê-lo, mas nunca poderei tê-lo;
agarrar o vapor de ar que se espraia como ilusão,
e, como todos os meus pares, poderia ter sido tanta coisa.
mas não me debulho em lágrimas,
todas elas evaporam, hora ou outra,
tudo o que poderia ser e é, é o que está,
talvez outras escolhas, outras escolas,
outros erros que transformaria em acertos,
justificando todos os pecados que quis e gostei de cometer,
ao menos, na curva do destino, terei a noção
de que todos as minhas escolhas me trouxeram aonde estou hoje,
como não posso me queixar de ter sido falho,
mas quem nunca o foi, pensando em sempre acertar
e estar certo em tudo?
talvez minha única virtude foi nunca ter mirado na certeza,
mas nas dúvidas do caminho, ou, sequer, ter pensado,
na montanha-russa vertiginosa da vida
minha escolha foi sempre seguir reto,
como um autômato que esqueceu de ter outra programação
e pensando bem, 30 anos de escolhas não são 30 anos de erros.
olhando para trás, carrego bons momentos,
e eles são tudo o que posso me orgulhar,
estar vivo, apesar de tudo, estar são, apesar de tudo,
estar eu, apesar de todos,
dobrei-me, com certeza,
sem a pétrea certeza do ferro, mas a maleabilidade do plástico,
e a plasticidade da vida foi tornando os dias mais amenos
bem como existir se torna, cada dia menos, um fardo insuportável,
como um dia foi,
pois, aos 10, aos 20, o momento é o agora, 
e a mudança é para ontem,
hoje as mudanças podem ser amanhã, pois o hoje é impróprio.
até mesmo estes versos foram adiados à exaustão,
pois eles acontecem no momento em que a realidade me consome,
e mesmo a realidade é um mundo paralelo à parte,
de programas a serem executados e sofrimentos pelo tempo curto,
eu não sou mais o poeta de 2012,
tampouco o de 2014, muito menos o de 2017.
o poeta de hoje escreve com a incerteza de que esses versos
não poderiam ser uma prosa envergonhada,
mas também, quem sabe, essa seja a maneira que encontrei
para expressar melhor todos os sentimentos amalgamados no ar
que não sei se são bons ou ruins, se são coloridos ou não,
o fato é que a realidade me consumiu enquanto verso,
parágrafo ou texto e hoje não sou nada mais que um tijolo.