sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Aparências.

Sentei por um momento na frente de meu filho, deu a entender que eu iria vir como de praxe cobrar-lhe boas notas, cobrar-lhe qualquer coisa que ele estivesse por fazer errado em duas horas de conversa, intermináveis para ele, eu até entendo a sua chateação. Mas ser pai, é um horror. Nunca se chega para ser o vilão da história, mas sim para ser aquele que põe a mão no ombro e ser dele, o filho, o mais próximo de um amigo que as relações que cobrem um teto permitem. Fazemos o possível, mas não sei que dá quando vamos caminhando na direção deles, parece que na nossa testa vem escrito, Vou conversar duas horas com você. Já vemos no olhar do filho que ele quer fugir, mas aí vem a vilania que nós sempre iremos abominar, mas que inevitavelmente nos conduz a tanto. Ser pai é péssimo. Lembro do meu, que vinha solene, com aquele ar altivo, ajeitando os óculos, levantando as calças pelos cintos e sentando naquela poltrona e desenrolando uma filosofia toda metafórica que só os pais sabem criar. Eu não sabia que era assim, mas quando um pai começa a falar, ele pode não ter instrução, como não tinha o meu, mas faz paradoxos, por vezes risíveis ou difíceis de acreditar, mas sempre com um desfecho moralista que nos faz sentir culpados pelo menos por duas horas depois do fim da conversa.
Meu filho quer se levantar, fecha os livros, eu tenho então que parecer o vilão, e levantar a voz, dizer, Fica aí, e ele tem que obedecer. O que nos diferencia são apenas dezesseis anos, e veja só como ele está agora: um homem maior que eu, do tamanho desta porta. Me sinto quase constrangido em lhe dizer que não faça certos tipos de coisas. Por exemplo agora. Como vou falar para um quase homem mais alto que eu que ele não deve fumar?, e como vou explicar que encontrou isto em sua mochila enquanto mexia nela, sua mãe?, mas a Desiré é osso duro de roer, a mulher. Ela me encurralou na parede e disse, Ele tá fumando, José.

- Ou você descobre isso por você mesmo ou eu vou ter que descobrir por mim mesma. Nem você fuma nessa casa, porque que ele tem que fumar. Coisa mais nojenta, cigarro. Vá lá, converse com ele, ou eu vou bater nele, e se você não gosta, imagine eu. Daí, como fazer isto?, o menino tem quatorze anos, já deve estar se tremendo todo. Mas eu nem estou com raiva. Pense bem José, você está diante de uma situação que não contém nenhum risco. Pior seria se ele estivesse com um cigarro de maconha ou então uma carreirinha de pó. Deus me livre uma pedra de crack. Coisa horrível. Será que ele viu o bater de nós dos meus dedos na mesa de madeira. Ele olhou para os cadernos, e suspirou um puta que pariu que eu quase escutaria se estivesse com raiva. Pus o cigarro em cima da mesa e ele olhou contorcendo a boca. Ficou calado a observar o cilindro pequenino e branco de filtro amarelado, meio amassado ainda estava, na ponta caia ainda um pouco do tabaco na mesa. Ele não deu palavra, peguei-o de volta, o cigarro, e chamei meu filho para o segundo andar, onde tinha a sala de estudos que era também um escritório e biblioteca. Lá ele desviou o quanto pôde o seu olhar do meu, como que a procurar uma desculpa para aquele erro. Temos disto em nós, de repetir a pergunta para desviar a atenção das pessoas que nos questionam enquanto estamos matutando em nossa mente a resposta mais conveniente para tal.

- Que vacilo, hein?, lho perguntei, e ele desviou por um instante os seus olhos da janela.

- A mãe achou, não foi?, ele revolveu a pergunta, enquanto sentava na cadeira a minha frente e eu abria as janelas, fazendo entrar um vento. Olhei por ela, e lá ia a Desiré no carro olhando para mim e fazendo aquele olhar de quem diz, Vá lá e mostre pra ele. Mandou um beijo no ar e saiu. Eu ainda a amo e isso é incrível. Tenho medo de lhe dizer a verdade, verdade que eu não consigo falar mais alto com meu filho. Não dá mesmo. - Achou. E ela quer que eu tome uma iniciativa com você.

- O quê?, perguntou ele.

- E eu é quem sei? Ela me acha um mole.

- Seja homem, pai. Me ponha de castigo, homem! Confisque o meu video-game. Proíba a internet, faça alguma coisa, eu sou o filho, tu és o pai, quer me adiantar esta responsabilidade? Quer me traumatizar? Eu não ligo pra isso. Estou mais preocupado com os meus livros, não confiscando-os, é o que importa. Tenho ainda prova de química e não sei o que fazer. Por isso, peço: só não confisque os livros. Teve alguma ideia?

- Não, me dá o isqueiro, pedi enquanto retorcia os dedos de nervosismo. Se tinha uma coisa que eu não gostava era de que me dissessem o que fazer. Mas se por acaso não me dão um direcionamento, fico a mercê do acaso. O acaso já me mostrou que é falho. Os resultados são sempre os mesmos, essa mistura de bom e ruim, que nos dá conformidade, nos faz pensar, É, não veio o que eu queria, mas vindo isto, está bom demais. Tudo bem, disse, vai pro seu quarto, está proibido de, de, de ver seus filmes, pronto.

- Tá ótimo, velho. Muito bem, disse ele, pondo as mãos no meu ombro e indo até a porta.

- Ei, você não vai falar nada pra sua mãe, vai?, perguntei, ridículo, me senti depois. Aquela pergunta me fez lamber o assoalho diante do meu filho. Que ser ridículo me senti. Meu pai teria vergonha, eu sei que meu filho tem vergonha desta personalidade submissa, destes gestinhos medíocres, desta coisa que se esconde pelos cantos da pauta de uma escritura, nos medinhos mais insignificantes, a tremelhicar os dentes sobre as unhas. Medo da perda sempre foi o maior problema da humanidade, e de todo jeito ela sempre acaba destruindo e não simplesmente perdendo para que outro possa achar. Eis que meu filho destruiu este medo, e em seguida esta minha cisma de ridículo que sou, pelo menos nesta frase que se segue.

- Claro que não, pai, ia sair, mas voltou e disse, Eu te amo, velho, e aí sim, fechou a porta e foi para o seu quarto, voltou ainda de uma vez e disse, Não te preocupas, homem, vou continuar guardando na mochila os teus cigarros.

- Obrigado. Falei automático e depois, com o cigarro a tostar em minhas mãos soltei uma baforada pela janela e lembrei de meu pai, que nunca fumou na vida e sempre e quis longe dos cigarros. Eu sabia que quando ele vinha conversar eu passaria a mesma vergonhosa situação pela qual passo agora. Mas eu não me importo. Eu amo a Desiré. Enquanto ela não se importa, eu vou fumando. Depois entro na ducha, tomo um banho com um sabonete cheiroso e a espero depois do trabalho na nossa cama, sentindo a sua respiração cansada e ofegante, dela, que pensa que não sei, fuma também.



Tire as Mãos de Mim - Chico Buarque.

0 comentários:

Postar um comentário