“Fica
um pouco do teu queixo
No
queixo de tua filha”
Carlos Drummond
de Andrade
Movimentar-se é
sempre um grande desafio. Na maioria das vezes, nem queremos voltar de onde
vamos. Sei que existem pessoas que vão e vão mesmo, não voltam, e que por onde
passam deixam aquela marca irremediavelmente sua, fazendo com que as pessoas
que lhes viram, ouviram palavra, ou apenas na memória ficou por um tal perfume,
ou pelo gosto de algum beijo dado por algum eventual caso de amor. Sabe lá!
Meu avô era
assim. Eu lembro que ele foi muito importante antes que eu conhecesse novos
avós que escreviam as palavras que eu gostaria de escutar (sobretudo um tal
Saramago).
Não. Não diria
importante. Intermitentemente o via. Já inclusive o xinguei. Sejamos então
bastante sinceros em relação a tudo.
Mas dentre as
poucas palavras que trocamos nas festas de São João que ele organizava em
frente à sua casa, que ficava até bem longinho da
capital, pelos idos do Parque Luzardo Viana, soube extrair dele aquele ar de
sabedoria, próprio dos velhos, patriarcas das famílias – e esta minha família
do lado de meu pai, tem certa tradição familiar, que eu antes só achava haver
nas famílias das novelas. Claro que não são milionários, cheios de
intelectuais, ou que resguardam em si, um sangue lusitano, italiano, hispânico,
daqueles que gritam nas mesas de reuniões familiares.
Nós gritávamos
também, só para constar.
Aquele café da
manhã de domingo era sempre um acúmulo de fofocas da família, do primo que iria
se casar; da tia que nunca ia aos aniversários; daquele primo que longe morava
e que não ligava, daquele que um dia morreu... Temas polêmicos, como religião,
perpassando pelo avanço constante do cristianismo protestante dentro de minha
família – sobretudo por meus primos – em contraste com o tradicionalismo
católico dos mais velhos – no caso, minhas tias. Ou mesmo futilidades, a vida
das celebridades, os filmes em cartaz... Eu sempre permaneci calado, observando,
como um telespectador – como o telespectador
– que sou. Apenas depois de um tempo foi que vim a participar destas conversas,
que segundo me parece, veio mesmo lá dos tempos de meu avô.
Um dia, tantos
meses antes de sua morte, soube que ele havia vindo desde sua casa até
Fortaleza com os piscas-alertas ligados. Era um homem de passado rude, que,
ruidoso que era, os filhos guardavam sempre na memória aquele Seu Pompeu que
dava gritos estridentes pelos corredores da casa.
– Lili!
De Liege: esse
era o nome de uma de suas filhas do segundo casamento, era o grito que eu
costumava escutar – mesmo depois de velhinho, que era um misto de um grito
carinhoso e avisando de que lá vinha uma hora de sermão. Sermões estes que se
transformaram em marca registrada dos filhos, que passou para os netos e enfim,
hoje, esperamos passar aos bisnetos, que ainda são pequenos, mas já falam pelos
cotovelos.
Mas voltando ao
caso do pisca-alerta ligado, ele veio por todos aqueles quase ou mais de dez
quilômetros, eu acho, dirigindo sua Quantum, 1989, que substituiu o seu antigo
carro – que os filhos insistiam que trocasse, pois que o antigo Del Rey era um
estorvo em sua vida, e que naquela idade (por aí de uns oitenta e tantos anos,
mas de cinco menos de noventa) não poderia ter mais estresses com carros.
Seguiu Fortaleza adentro, passou pelos bairros até chegar à casa de sua filha,
onde ela viu-o já chegar de longe com as luzes amareladas a piscar, e pôs-se a
falar, quanto que ele, conservando aquela mesma rabugice dos velhos tempos,
olhou para a atual esposa, balançou a cabeça, e disse,
– Foi Verônica
quem deixou ligada esta porcaria... Não te disse, filha, que tu deixasse esse
carro do jeito que tu encontrou?!
– Mas, Filhinho,
o último que usou o carro foi tu...
– Cala a boca,
mulher!
Os risos sempre
corriam à vontade, e desta vez não foi diferente, pois que este não era ele?
Era marca sua, deixada para trás e para frente por essas gerações futuras –
todas movidas da pura rabugice. Sei que mesmo depois de doente, enfermo mesmo,
sabia vez por outra das notícias de que ele era a mesma descarga de rudes
palavras com a sua então esposa, até o dia em que viu até mesmo o finado Tio
Aroldo, morto desde 1991, a chama-lo (outra característica desta minha família
é ser muito crente em fenômenos esotéricos, místicos, uma religiosidade à flor
da pele) para ter com ele um dedo de prosa.
As demências,
delírios e alucinações que permeiam o pré-morte.
No dia em que
morreu, sentados estávamos a relembrar aquele dia do pisca-alerta ligado,
marcando todo um trajeto, chamando a atenção de todos – deixando ali sua marca,
inconsciente, mesmo que sob os risos, riem até mesmo aqueles bisnetos que nem
chegaram a conhecer a história, presenciá-la ao menos com a consciência do
cômico. Mas na cabeça desta sua geração posterior, é inerente sua voz. Ecoa um
pouco em nossas vozes um tanto de seu timbre e tom.
E,a,p’
Fortaleza, 04 de junho de 2011, sábado.