sábado, 10 de setembro de 2011

Um eu fragmento, um eu dilacerado


Fernando Pessoa em "Flagrante Delitro"

Era um paspalho e sabia disso tanto que tinha a mania esquisita de se sentar na calçada e contar os passos por cima das linhas. Poxa vida, como tínhamos um misto de raiva e dó daquele cretino. Toda a nossa vontade era de ter o cérebro dele funcionando dentro de nossas cabeças cheias de ideias mais aguçadas em relação ao corpo das mulheres, à bola na rua, à outras coisas que não os estudos, que não á sua chata compenetração estudantil. No fundo o seu silêncio gritava que o burro era eu, que éramos todos nós. E quando eu dei por mim lamentava por não poder levar esta história adiante, enquanto papel rabiscava o guardanapo manchado de uma tinta que dançava aos olhos. Precisava de inspiração, eu precisava largar a cachaça, o cigarro, essas amizades fracassadas que não me levariam a lugar algum e tentar continuar, seguir em frente e ser para mais além de um cara que lê muitos livros. Preciso de sexo bem pago. Preciso de exercícios físicos e dieta balanceada. No fundo eu preciso ser como as outras pessoas. Eu não leio porra nenhuma! O que me move é esta fuga da realidade, e no final das contas, eu leio romances, e meu pai nunca precisou ler um romance para ser o que foi -- e não é isso que me indigna. Meu pai não é nada, assim como eu ainda não o sou. Mas eu tento ser diferente. Sabe esta cicatriz em cima da sobrancelha, descendo até aqui na boca? Fui eu tentando não parecer meu pai, tentando ser outra coisa que não seu resto (seu trocado) de gene. Foi tudo o quanto ele deixou para mim, e não é o bastante. Se ele pudesse olhar em minha volta, ele iria ver que o que ele deixou foi a miséria de uma vida indigna. Eu sempre vou ser a sombra do que ele foi -- e mesmo que eu não seja ele, eu serei ainda uma sombra uma negação daquilo que ele não é. Como sou pobre, como somos pobres, cromossomos mal feitos, cromossomos malditos! A todo instante eu forço minha garganta para entrar uma gota após a outra de um gole de cachaça -- e assim eu vou criando minha ficção, embolando em minha cabeça qualquer história que não seja a minha própria, que a realidade... ah, a realidade. Se você acha que eu prefiro viver na ilusão, eu lhe direi que a ilusão é uma realidade, e essa realidade tem andado um tanto iludida. Eu ainda lutarei. Eu ainda lut...

E,a,p'

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