sábado, 14 de maio de 2011

Olhinhos de Vidro





Todos os dias era sempre a mesma coisa. Todos deveriam se perguntar como alguém que se diga digno de ser chamado "pessoa", "ser humano", "homo sapiens sapiens", poderia aguentar viver naquela rotina que vivia o Passo-fino, ser humanozinho desprezível e repugnante.


Todos os dias passava com a sua pressa de sempre, de hábito seu, cheio de dor no andar cambaio; o rosto imberbe escondido sob a ponta das pastas amontoadas e apertadas contra o peito, fortes, todas elas, contra si, como que tratasse de um filho recém-nascido seu. De se espantar não era que começassem a fazer troça do seu jeito retraído.


Na esquina, ficavam os malandros, opostos de sua vida - malandros, digo, não vagabundos, desordeiros, bandidos. Posto que lá também frequentassem alguns que seguiam esta linha, mas bastava chamá-los malandros, aqueles de fina-flor de doçura, cândidos mesmo, que mesmo nada fazendo, faziam-no muito bem - que soltavam frasesinhas jocosas com seu jeito de andar, apressado, sua camisa sempre suada, os óculos embaciados, mal dando para ver o olho do assustado dono.

Mas Tico de Gente, vagabundo, desordeiro, assassino, estuprador e aliciador de menores, era assíduo frequentador da esquina do Bar do Chico Rato, com quem mantinha frequente contato, pois onde mais a pindura? Mas Tico de Gente - um amarelo do tamanho de uma porta - começou a entrar na brincadeira com o Passo-fino, achando ruim que o rapaz não lhe fizesse conta, como todos já estavam cansados de saber. E Tico foi mais além que chamá-lo de apelidozinhos infâmes, passando a tomar dele importante tempo a implicar com seus trejeitos à queima roupa, não mais do alto da calçada, como antes.


- Olha aí, o veadinho. Vai pra'onde, boneca, todo apressado desse jeito?


Todo mundo sabia que Passo-fino era um cara decente, era um cara esforçado, cheio de manias esquisitas, trancafiado em sua casa, mas era um cara que dava um duro danado para ter o que tinha, que era tão pouco, meu Deus, quase nada, mas ainda era algo, mesmo que escasso, por isso achavam ruim que Tico se metesse com ele a maneira como fazia agora. Pilheriar, aí tudo bem, mas daí a humilhar, expô-lo ao ridículo como agora? Aí era demais. O assustado Passo nada fazia a não ser balançar - de longe se via - a pequena cabecinha mal sustentada pelo pescocinho fino e desequilibrado pelos óculos visivelmente desproporcionais.


- Porra, Tico, deixa o cara, que saco, vez por outra lhe pediam embevecidos com a cara sôfrega do homenzinho a querer seguir seu caminho e sendo impedido por aquele embargo gingantesco em sua frente.


Passo-fino passou a ser constantemente roubado por Tico, que lhe subtraía diariamente quantias que eram destinadas à sua alimentação diária. Pobre dele, que ia fazer? Brigar é que não... Ficava acabrunhado, pelos cantos, cheio de dedos enquanto o Tico se fartava de cachaça com o dinheiro do rapaz, que não satisfeito em lhe levar o dinheiro e humilhá-lo, passou a bater, com cada vez maior frequência e intensidade. Em pensar que tudo isso começou com uma tapinha no rosto de agradecimento... Daí, gostou e na mesma hora voltou sobre os calcanhares e acertou-lhe um soco seco e abafado no estômago, deixando-o caído no asfalto molhado de oito da noite, lama a correr pelo meio-fio, e sua boca aberta, corpo em posição fetal, choro desconsolado.


*

- Quanto é um revólver?

- Depende do calibre, da função que cê vai dar a ele, se quer matar, se quer ferir, aleijar, desfigurar... Depende.
- Um que dê para ser letal de muito perto.

- Basta um 22. Pior que veneno. Não sai de jeito nenhum.

- Jura?

- Conheço um cara que tomou um tiro na bunda e até hoje tem a bala alojada lá.

- Ok. Quanto pago por ela?

- Zentão. Desculpa - mastiga o homem a barra de cereais - Trezentão.

- Aqui.

*


O galo mal havia cantado e lá vinha Tico, balançando os braços atrás de si, passando pelas ruelas esburacadas do bairro. Carecia de um pileque pra começar o dia. Avistou Passo cruzar a esquina desconfiado e achou que poderia afanar-lhe algum trocado. Chegou-se a ele, deu dois passos mais para perto, o olho pequeno lhe fitando o óculos e seu reflexo, por um segundo quase lho assustou, mas conseguiu se desvicilhar da sua imagem ameaçadora e sacar a arma: matou Passo-fino com um tiro no peito, pegou-lhe o dinheiro e subiu a rua. No chão um amontoado de papeis a voar, cheios de vida - mais vida tinham que o homem que estava deitado no chão, de braços abertos e uma mancha a florescer e alargando-se em seu peito. Olho aberto, míope. O céu caía em gotas pequenas e os óculos (seus olhinhos de vidro) estavam no chão, tão mais vivos que seu dono.




E,a,p'

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