domingo, 26 de abril de 2015

fragmento II

Teve aquela vez em que corri desbaratado atrás do ônibus, mesmo sem ter tomado café da manhã naquele dia, indo pro trabalho; o ônibus daria a volta dali a dois quarteirões, se eu corresse pela rua paralela ainda conseguiria ver quem desceria, se tinha sido coisa da minha cabeça ou da fome, ou da pressa de não me atrasar para o trabalho, mas, visto que se fosse você, e se fosse você, eu não me importaria de chegar atrasado, meia hora, uma hora, faltar o trabalho só pra tentar fazer alguma coisa que ainda não sabia o que era, e era tudo o que era necessário, corri, cheguei a tempo, o ônibus ainda estava parando, abriu suas portas, se era você, nunca soube, só se saltou do ônibus, só se esperou que eu sumisse, numa suposição de que tivesse me visto, e era, sim, o ônibus que eu costumava esperar antes você descer, a gente ia andando, descia nas ruas imundas do centro, o cheiro de óleo velho de batatas fritas, o córrego onde passava aquela lama imunda de águas que vinham sabe lá deus de onde, vagabundos misturados no meio de trabalhadores do dia-a-dia, de gente que a gente não poderia jugar, mas íamos juntos até a biblioteca, discutíamos o quanto era difícil, o quanto era insuportável viver, o quanto isso era, de certa forma, bonito, eu costumava citar aquela epígrafe do livro do Saramago, dO Homem Duplicado, “o caos é uma ordem por decifrar”, do fictício Livro dos Contrários, e era nesse caos que a gente se encontrava, ou pelo menos eu achava que era sim, hoje em dia eu vejo que o caos é um movimento contínuo, de aqui e lá, instante, e como desmistifica-lo ao todo, é saber que a desordem é a ordem única, desordenar-se é o único meio de viver em meio ao caos.

Minha cabeça hoje está assim, porém, sozinho dessa vez, e eu sabia apenas que deveria um dia começar a falar de você, mas não sabia como, e desordenado, comecei, como desordenei-me desde o dia em que resolvi dar fim ao que tínhamos.


Não sei de certeza se isso é uma história de amor, de loucura, uma biografia, uma biografia da minha insanidade, um panorama social no qual fui me inserindo pouco a pouco, ou. Ou qualquer coisa. 

Apenas que desde aquele dia, as coisas parecem nunca mais se encaixar, e, bem ou mal, a vida segue, e esse é o ridículo do amor: ninguém morre de amor, saudade, as pessoas simplesmente vivem as suas vidas, conhecem outras, tentam afogar no poço úmido de suas profundezas e intensidades líquidas as expectativas do que até ali foi amor de verdade. 

Se foi ou não, como eu posso saber?, apenas dá-se de sentir quando penso nos melhores dias da minha vida – em seu tempo, a gente lembra, a vida parecia um quarto desmoronando, as nossas cabeças entupidas de intenção, de vontade, e éramos tão jovens, a vida não era boa, mas tínhamos nossas pernas e braços juntos e juntos parecia que valia a pena, embora as brigas, embora uma série de coisas... e me desculpe, mas eu precisava falar de você, deixar que meu peito pudesse derramar um pouco do que guardo há dez anos.

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