Wong Kar-Wai
homenageou um quarto de amantes, número 2046, recompondo com um nome soberbo em
minha opinião, brotado sabe lá Deus de onde: Os Segredos do Amor. Vou lhe dizer
uma coisa: posso não ser o detentor dos segredos do amor, como o meu
quarto-irmão famoso, mas sei de muitas noites dormidas e não dormidas passadas
entre quatro paredes entre duas pessoas, com vontades e desejos, bocas cheias
d’água, beijos que irradiam da noite, coisas sussurradas ao pé de ouvidos de
mulheres, de homens, que lhos faziam sorrir maliciosos, como que a serem
observados. Eram sim, mas pareciam, e eu quase chegava a desconfiar que sim,
olhar para minhas paredes, meus papeis de parede floridos, meus lustres. Sei
que estes amantes também o deixavam de ser aqui também, muitos deixaram de se
amar aqui, fingiam não conhecer, ou deixavam de viver aqui. Minhas paredes,
floridas em marrom-claro, com pequenos detalhes em madeira nos cantos das
paredes, aonde iam-se as dobradiças invisíveis das portas que não existiam a
separar os dois pequenos cômodos, já foram manchadas de sangues de pessoas que
não acreditavam na beleza de amar, ou que por acreditar demais nesta beleza é
que faziam jorrar as lágrimas do pensamento em meu corpo. Quis enxugá-las
certas vezes, mas as paredes, por mais forçosos os movimentos que tentava fazer
não conseguiam alcançar os olhos abertos dos pobres homens que se viam
encurralados nas suas obsessões. Nem ao menos fechar os olhos deles eu podia.
Mas aqui não se viu apenas tristezas, vi casais apaixonados a comemorarem anos
de namoro, anos de casados, anos de felicidade conjugal que na minha plenitude
de quarto de hotel sou capaz de enxergar como possível.
Sou o quarto
intermediário de um pequeno hotel, como me esqueci de citar no fervor de minhas
palavras. Quarto 204, faltam-me um 6 para me equiparar ao quarto
cinematográfico de Kar-Wai, mas isto não faz de mim um aposento infeliz, muito
pelo contrário, já que faço parte de um prédio antigo, digo que sou muito feliz
em minha vida. Observo todo movimento de um centro de cidade sujo, e às vezes o
que vejo aqui dentro de mim é uma explosão de beleza bruta. Pode-se dizer que
em mim passa sempre um filme na cabeça de cada um dos que freqüentam estas
paredes.
Um escritor certa
vez entrou porta adentro com uma idéia fixa na cabeça que não conseguia
desenvolver de maneira alguma. Tirou toda a roupa, ficou à vontade e sentou-se,
olhou para minhas paredes, alisou-as e perguntou a elas que amores diferentes
vocês já não viram serem praticados aqui dentro, ein? Daí passou a escrever e
em menos de três noites passadas aqui dentro saiu com uma belíssima resma de
papel sob os braços, e ao passar pela porta não esqueceu de beijar as paredes e
prometeu retorno breve para agradecer-me o que tinha feito por ele. Só um louco
acreditaria nesta história de que um quarto de hotel lho inspirou.
Sei que há uma
quantidade inesgotável de casais que se encontram aqui para verem-se, já que as
paredes invisíveis do mundo não lhos transmitem segurança de saírem assim de
mãos dadas, dizer um ao outro, eu te amo, e ouvir do outro, eu também te amo.
Um homem forte e vistoso sempre vinha aqui durante às tardes de quarta-feira
para se encontrar com uma bela mulher loira, que no começo de tudo sempre vinha
satisfeita, com palavra nenhuma pronta na boca, além de um beijo que trazia
pronto para dar-lhe, e enfim abraçarem-se, enquanto degustavam de um champanhe,
de um vinho, de uma bebida que bebericavam enquanto dançavam valsinhas tocadas
por um aparelho de som por aqui deixado. Depois enfim, tiravam suas roupas,
deitavam-se sobre a cama, amarrotavam os lençóis, e as minhas paredes tinham
trabalho para abafar os sussurros que assim eram por conta deste trabalho
dedicado de não deixar o quarto vizinho ressoar esses gemidos de amor, isto
sim.
Cansou-se a pobre
mulher, não soube de quê no começo, na minha sabedoria de concreto, mas depois
enquanto conversava comigo entendi que o homem era casado, pois pude ver depois
seus dedos de marca de aliança retirada. Ela própria não sabia disto, apenas o
questionava por que você não minha tira desta clandestinidade? Enquanto ele
desistia de tudo, depois de ter com ela sobre os lençóis, vestindo-se
apressadamente, abotoando a blusa, a calça, o cinto e vestia-se, deixando a
pobre mulher cada dia mais triste, cada dia mais cansada daquilo tudo. Não sou
capaz de ver uma mulher chorar, pois apesar de ser, apenas o é metaforicamente,
não tenho coração de pedra para suportar tanto. Um dia, tendo ele chegado mais
cedo que ela deixou sobre a pia do banheiro sua aliança, foi aí que utilizando
a força de movimentos que nunca antes ousei fazê-lo, escondi sua aliança
enquanto ele tirava os óculos para lavar. Depois que brigaram, como estava a
ser costume rotineiro do casal, a mulher sentou-se sobre o vaso, e da pia
deixei cair a aliança, enquanto ela olhava para o chão, eis que a aliança,
girando sobre si mesma parou sobre seus pés brancos e descalços e tendo pego a
pequena auréola que lhe faria a discórdia, apenas limpou seus olhos, refez sua
maquiagem e saiu batendo a porta, não sem antes atirar sobre o homem a aliança
e dizer que tinha vergonha de ter sido feita de palhaça por tanto tempo. Não
sou um quarto vingativo, mas acredito que a justiça deva ser feita a quem
merece tê-la. Quem era ela além das portas não me interessa, mas sei que a vida
do homem, o cinismo que o envolvia também estava evidente na maneira como não
saiu do quarto, puxou de seu telefone e ligou para outra mulher. Olhando desta
maneira, creio que há quem pense que esta minha atitude foi na verdade muito
justa.
Mas nem tudo são cinismos
e vendettas. Pois há um belo casal, singelíssimos, que vêm também aqui de ano
em ano, numa data certa, que não muda nunca, nem que chova, nem que esteja a
cair o céu sobre as cabeças dos homens, se encontram há
exatos 40 anos debaixo deste mesmo teto, põem sempre a mesma música lenta,
seguram as mãozinhas juntas, uma pertinho do rosto do outro, e dançam a valsinha sorrindo, dando beijinhos
na ponta de seus lábios ressecados de sol, e sentando-se ambos logo após na
ponta da cama conversam, riem, não se deitam nunca, seguram suas mãos, olham a
janela, que é aberta pelo senhor de bigode vistoso, que imita uma cena que
ocorreu há tantos e tantos anos. Não chego a chorar, pois então, jurariam que
eu estou cheio de infiltrações. Mas, uma hora depois, dizem sempre os dois um
ao outro, eu te amo tanto, minha vida, e eu te amo tanto, meu querido.
Eternamente, repetiam um ao outro. Nunca batiam a porta, encostavam-na
lentamente, dando sempre a certeza de que vão voltar ano após ano.
Mas assim como não
há apenas beleza e maldade, há o cômico. Uma cabeça em especial bateu sobre as
minhas paredes diversas vezes, mas que por mais que possa doentio de se dizer
ela gostava a pobre mocinha. Quanta obscenidade ela não ouviu dizer consigo e
de prazer continuar a amar o homem que com ela ia – às vezes mais de um homem,
mais de um casal, coisas das mais absurdas, de fazer chocar até um quarto de
hotel tão discreto. Mãos na sua cara, nas suas coxas, dedos a penetrar por
entre os orifícios possíveis, palavrões, pedaços de madeira e couro. Sangrou
muitas vezes, mas deixou-se quedar sobre o peito cabeludo de seu amante cruel a
sorrir, beijá-lo e dizendo que eu te amo. E eu quando começo a achar que
entendo sobre o amor, sobre o que move este sentimento humano, eis que me
surgem estes tipos, que atordoam meu discernimento que tento formular dia após
dia, noite após noite, cliente após cliente sobre o amor. Que entenderei se
entre quatro paredes as pessoas são outras, possuídas de tolas vontades que
depois de algum tempo, são nada além que puro cansaço.
Quando vem a
chuva, presencio pessoas que entram mudas, saem caladas, observam as janelas e
daí penso, questiono: quem será normal: aquele que chega falando de si para si
ou aquele que não cai nesse desvario e apenas deixa sua mente ser guiada pelo
cansaço? A chuva traz os olhares mais tristes por trás de vidraças molhadas,
traz relatos solitários, solitários como a noite do centro. Fumam enquanto vão
dizendo para si mesmos, estou muito bem, acredito que isto, este mundo, seja
uma grande frustração. Tento esquentá-los, fazê-los enxergar o aconchego de um
lar. Mas como fazer sentir isto àqueles que trazem consigo a alma estrangeira?
Pertencentes a lugar algum. Ou de todo lugar, vá lá.
O Quarto 204 está
vago?
Está sim, senhor.
Vocês poderiam me
alugar por este fim de semana?
Sim, sim. Basta
assinar aqui.
Tudo bem, aqui ó.
Pronto. Tudo certo?
Claro, claro.
Trouxe alguma mala?
Nenhuma que
precise de ajuda. Está tudo aqui.
Subiu resolvido a
entrar, fechou-me as portas e diante de uma mesa, sentou-se com uma cadeira que
trouxe da cozinha. Abriu uma maleta tirou as folhas de papel que um dia eu já
tivera visto. Era ele, O Escritor.
Boa noite, senhor.
Quanto tempo faz, falou retirando as roupas e sentando-se à beira da cama.
Tenho que te dizer, que antes de ser escritor de romances, esses pequenos
folhetins, eu já estive muito aqui com a minha mulher. Não a minha esposa, mas
a minha mulher. A única que amei na verdade. Encontrávamos-nos afoitos para nos
vermos nus aqui neste quarto, e então, nos víamos, tínhamos um ao outro nos
braços, ela fazia tudo o que eu queria, Sr. 204. Acho que foi aqui que falei
sobre Wong Kar-Wai, sobre o quarto 2046, e, meu Deus, que filme sublime. Por
sorte encontrei um quarto que me reavive todas as lembranças. Talvez não seja
tão bom assim, mas... Arh, vida! Que saudade de minha Jane! Exclamou enquanto
derramou uma dose de uísque gargalo adentro.
Não encontrou até
hoje nenhuma mulher que ocupasse o espaço dela?
Nenhuma, Sr..
Nenhuma. Para mim, nenhuma outra mulher merece entrar aqui, deitar nesta cama,
brincar comigo, fazer amor comigo. Porque só com ela eu fiz amor. Com as outras
é tudo aquilo que as pessoas costumam fazer por aí, utilizando aquele linguajar
vulgar das ruas, coisa mais crua, mais cruel também. Com as outras a gente
trepa, a gente fode, come, dá umazinha, descabela os pentelhos, despenteia o
palhaço, mete o ferro, desce o pau, mete a vara, essas coisas. Por mais que eu
não queira que seja isso, é sempre isto que vai ser. São pernas diferentes, são
cheiros diferentes, que você se esforça por dizer, ei, isto é amor, cara!, mas
que no fundo, você sabe que não há como mentir para elas. Pior para nós mesmos,
Sr.
Você está bêbado.
É, devo estar.
O Escritor riu de
si mesmo, empunhou da máquina de datilografar e disse para si mesmo que estava
provavelmente louco, pois estava conversando com um quarto de hotel, e disse
isto em voz alta. Não chego a me ofender, ele mesmo pede desculpas,
contradizendo-se no instante seguinte.
Wong Kar-Wai disse que as pessoas tomavam
num trem o rumo certo sempre para o futuro em 2046, onde lá vivem as ilusões
perdidas. Perdidos eram também os corações que iam até lá para buscar neste
futuro alternativo, incerto as ilusões.
Vou para o passado.Tranco a porta do
quarto 204, retorno ao dia exato em que conheci o corpo da mulher com a qual
tomei a liberdade de chamá-la minha. Minha mulher.
Deslizo os dedos por entre as teclas duras
e desgastadas da máquina e é ela quem me leva até o seu olhar castanho, que
cruzava as lentes dos óculos enquanto que o quarto onde permaneço, que é este
204, vai se renovando a cada palavra dita. O passado volta, mas eu continuo o
mesmo, até mais velho pareço a cada pé volvido ao meu próprio acervo de
memória. Ela cruzaria este bar, olharia, reconheceria, pois o amor atravessa,
não o tempo, mas a fronteira vaga do coração, que não guarda a pele, o cheiro,
mas sim a essência do solitário sentimento de reconhecimento que penetra na
cabeça de cada indivíduo que se apaixona.
Lá vem ela.
Ela abre as portas dobar, olha em minha
direção, passa pelo meu olhar, decidida a não fitá-lo, encontra um sorriso
amigo ao fundo do bar, seus amigos jovens, que um dia foram meus também. Pele
enxuta, os dedos soltos a apontar o que se faria riso, e as memórias ainda por
remontar, ainda por tornar-se. Enquanto que eu vou vendo-a, remoendo-a, e meu
sonho, e eu mesmo e todo o quarto feito num amontoado de papéis que caem depois
de suspensos no ar. As paredes deixam-se cair em sua matéria mais fina, areia
que inunda meus bolsos, e enfim todo o quarto.
O que
é isto, Escritor?
É o
meu amor se esvaindo.
O que
é o amor, Escritor?
É a
eterna busca.
Uma
busca?
Eterna.
Nunca se deixa de buscar o amor, Sr. 204.
Mais
parece um sonho. Um ciclo vicioso.
Não
deixa de ser. Quanto mais perto nos encontramos de achar que estamos perto de
encontrá-lo – o amor –, eis que a realidade amorosa das coisas acaba por
tornar-se um amontoado de areia. Esfarelar-se nas nossas mãos é a primeira
coisa que acontece ao objeto Amor, quando se diz encontrado. Estou sendo claro?
Não.
Como
suspeitei. Eu sinto muito, mas é esta garrafa de uísque, esta lua cheia, acaba
por me deixar comovido, sentimental feito o diabo.
Fosse
uma garrafa de conhaque...
Não
sabia que as paredes conheciam poesia.
As paredes
sabem bem mais que você imagina, Escritor.
Fortaleza, 13/04/2011