“Foi então que tudo vacilou. O mar
trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua
extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre
o revólver.”
Albert
Camus – O Estrangeiro
*
“[...] Whichever I choose
It
amounts to the same
Absolutely
Nothing [...]”
The Cure – “Killing an Arab”
Fazem
dois anos. Exatamente dois anos que volvi da França, e ainda tento entender
porque o fiz. Voltar para este sol que assola a humanidade, tosta os miolos
facilmente, e quem dera, eu pudesse jogar uma ducha sobre o sol com a mangueira
com a qual aguo meu jardim. As lembranças me veem vez por outra como lampejo, o
turco ali no chão, e eu me sentindo um deus, sem saber por que. A minha cabeça
solta uma gargalhada frouxa e quase exteriorizo. Um remédio, gole d’água,
sôfrega garganta.
Uns
barulhentos vizinhos me chegaram a alguns dias. Tenho lá meus quarenta e poucos
anos, mas tenho minhas leituras. Foi por elas que vim da França. Foi por causa
delas que o Mojav deitou a boca ao chão, todo cheio de morte, todo cheio de
nada. Por que? E eu não lembro. Talvez eu não queira lembrar. Fazia um tempo
que procurava conformidade por ter abandonado meus estudos na França, a estudar
o existencialismo. Sartre invadia minha cabeça, etc., assim como Camus – e como
Camus eu me sentia. Principalmente... E minha cabeça não parece me obedecer.
Eles
começam. Na verdade é um garoto de quinze anos. Ele tem um cabelo desgrenhado,
branco como alma, delineador nos olhos, maquiagem, preto de tudo, como um
defunto, como um morto-vivo. Vi-o uma vez, e agora entendo o porque, já que
eles começam a tocar suas guitarras. Uma banda de pós-punk, góticos, new wave.
Meus dedos calejados de tanto metralhar a máquina de datilografar, e logo após
o computador, também já deslizaram pelas cordas de uma guitarra. Tocava
punk-rock, os Sex Pistols, os Ramones... Minha política era a principal razão
pela qual eu adorava o que fazia. E por isso fui à França. Tudo começou daí.
Algumas autoridades disseram para o meu pai algo assim:
–
Ou seu filho vai embora ou ele acabará sendo pego pelas autoridades, e meu pai,
como só tinha a mim de filho, viu que não poderia me mudar por isso me mandou
para a Europa, e no fim tomei jeito, e me abracei com o Velho Mundo. Lá teve
aquela onda do pós-punk, o que deu em Joy Division, que era o básico três
acordes, mas que com algo de poesia. Lá o Ian Curtis deixou algo, mas eu fui
além, e passei temporada na Inglaterra, e vi muita gente boa se apresentar por
lá... Vi o Cure, e num estalo reconheci o que tocavam os moleques da casa ao
lado: In Between Days, aquela música, me lembrava duma espanhola com quem
troquei bem mais que carícias num beco de Londres. Ela sabia bem o que fazer e
o fez com tal maestria que nunca a esqueci. Então eu voltei para a França com
ela, e o resto, foi história, foi a merda que deu. Eu queria ter permanecido
naquele beco por uma eternidade, ter vivido duas vezes a minha vida inteira
para estar ali, comendo aquela espanholinha, que me abraçava e me chamava mi amor, mi amor.
Meu
pai apenas me deu um revólver, e me disse que andasse com ele para onde quer
que eu fosse. Na época eu não entendi bem.
Mas
a faculdade, quem pagava era meu pai, e aí, tive que voltar. Do pós-punk pude
levar apenas o anarquismo, e dentro do curso de Filosofia existia uma rixa
entre visões políticas, principalmente no que se dizia ao Existencialismo, e o
racha ocorreu de forma que dum lado ficarão os comunistas seguidores de Sartre,
que ainda dava suspiros à época – mesmo depois de morto no começo dos anos
oitenta – e os defensores do Anarquismo Metafísico, de Camus, morto a mais de
vinte anos. Sabia que ambos escreveram além de tudo, ensaios e obras de ficção.
Sartre agradou-me, mas quando bati os olhos em Camus, vi que era aquilo que
queria. Anarquia a liberdade individual, e comecei a ler um dia O Estrangeiro,
sua obra mais famosa, onde o entrelaçar de absurdo estava no fato de um
indivíduo poder ser livre – o que fazia disto uma crueldade com a alma do
indivíduo.
Não
gostava do rumo de meus pensamentos. Dois comprimidos, um gole d’água. Sono
profundo. Eu não acreditava no que acabava de fazer. Eram duas da tarde, a
música do Cure prosseguia, entremeando com sucessos de outras bandas, como o
Gang of Four com “At Home He’s a Tourist”, Echo and the Bunnymen com “Killing
Moon”, Killing Joke com “Eighties” (que o Nirvana copiou desavergonhadamente em
“Come as You Are”), Bauhaus, entre outras coisas... Sob aquela atmosfera de
pesadelo negro, adormeci.
***
–
Tu achas mesmo que já consegue tocar esta porra?
–
Só se sabe tentando, e sob estas vozes, a partir daí, foi que acordei
assombrado com a letra daquela música. O moleque entremeava a guitarra com
sujeira e raiva, como nunca o Cure poderia ter tocado. Quem escuta “Boys Don’t
Cry” jamais iria se acostumar com a assombrosa melancolia dos seus primeiros
álbuns que contém canções como, por exemplo, “A Forest”, e esta que dedilha
lamentosamente o guitarrista, “Killing an Arab”. A música não prossegue
adiante, e, o que é pior, eles recomeçam como se não soubessem como ir adiante.
Desperto dum susto repentino e vou até a sala, onde ponho o ouvido à parede e
escuto eles começarem duas, três, quatro, um número infindável de vezes, que
atormentam a minha cabeça.
–
Porra, larga mão dessa merda, tu não vai conseguir...
–
Claro que vou.
E
recomeçava. E recomeçava mais uma vez.
Olhei
as horas: sete da noite. É geralmente nesta hora que a banda para de ensaiar e
partem cada um para suas casas. E é o que acontece. Minha esposa vem da cozinha
com uma xícara de café, que sorvo com sofreguidão, e ela percebe.
–
Tá tudo bem, meu amor?
–
Tá, tá tudo bem sim...
Mas
a música persistiu na minha cabeça. E, como não bastasse a culpa diária, ela
inflamava e criava pus, enquanto eu tentava retirar da cabeça a canção, que
parecia completar a letra, sozinha, automaticamente.
A
banda enfim vai embora. E jogo dois comprimidos na boca. Minha esposa percebe.
Nenhum copo d’água. Seco, engulo, adormeço, como uma pedra.
Acordo
às duas e quinze da madrugada e escuto cortar o silêncio o violão do rapaz, que
se contorce para acertar as notas de “Killing an Arab”. E, não vai adiante,
como era de se esperar – como para acabar com o meu sossego. Minha esposa
desperta e olha para mim, em estado de pânico, sugando alguma coisa, talvez
catarro ou lágrima, e ela então se põe sobre mim, e me abraça enquanto o violão
começa e não termina os acordes iniciais da música.
Me
envolve num abraço quente, beija meu pescoço, eu fecho os olhos, ela apalpa meu
corpo, eu o dela, e a música segue um ritmo cadenciado e lento. A liberdade é
este estado de demência? Ou seria a falta desta liberdade que me causasse esta
demência? Minha cabeça tentava raciocinar, enquanto minha esposa descobria seu
colo nu, e em seguido seus peitos, rijos, a balançar, enquanto ela estava sobre
mim e a música seguia a letra ritmada à voz do garoto que gaguejava qualquer
palavra enquanto me engasgava com a minha saliva, de nervosismo, e misto dum
prazer cego. A voz do garoto assume postura, ganha o seu quarto, invade a minha
casa, minha cabeça, enquanto repete, triunfante:
“I’m
alive
I’m
dead
I’m
the stranger
Killing an arab”
Minha
esposa vira-se num susto repentino, e eu gozo dentro dela mesmo assim. E ela
pergunta que há comigo, e eu num grito esmurro a parede:
–
Para de cantar a merda dessa música, seu filho da puta!
Sinto
o dedo do garoto abafar as cordas do violão, e de repente minha esposa olha
para mim sombria. Eu a observo, deitado e nu, enquanto ela se põe de pé e veste
sua camisola e dorme virada para o outro lado. Fico estupefato, achando que
talvez ela nunca vá entender o que aconteceu ali. Ela não sabe que matei um
árabe, como Mersault um dia o fez nas páginas de um livro. Sentindo-se tão
estrangeiro quanto ele, fui à uma livraria, onde um turco quis me cobrar os
olhos da cara por um livro usado. Virei-lhe as costas, enquanto ele praguejou
qualquer coisa, baixo. Não lembro bem o que pensei, não lembro bem o que
aconteceu em minha cabeça, sei que peguei o revólver que meu pai havia me dado,
e soube naquele instante que fazia algo que ia de encontro à lei, ou algo que
se valha. O turco deu um pulo para trás e a arma disparou dois tiros no meio de
seu peito. Ele voou para cima de uma pequena prateleira e caiu ali. Não corri,
não hesitei em demonstrar qualquer reação.
Meu
pai veio voando também. Mas do Brasil para me tirar da prisão. Meu passaporte
fora tomado, e me tornei persona non
grata em terras francesas.
No
caminho da viagem de volta, meu pai cansou de perguntar:
–
Por que, meu filho?, por que fizeste isto? A troco de quê?
Eu
nunca soube responder ao certo.
*
–
E aí, conseguiu aprender “Killing an Arab”, sujeito teimoso?
–
Não, não... quando a coisa não tem de ser, é melhor deixar quieto... Mas eu
tenho uma coisa melhor aqui que aprendi...
–
O que é?
–
Saca só, e começou a tocar os tons graves daquela canção obscura, que, ainda
bem, não tinha nada a ver comigo. Era apenas mais uma canção de pós-punk, cheia
de uma batida ecoada, e aquilo me agradava, para além dos delineadores e das
maquiagens em branco. Acendo um cigarro e tento apreciar o sol, o céu, quem
sabe agora não nos faltasse uma praia...
eap