Apesar
de não ter passado pela coluna ali ao lado logo abaixo, li Caim, de José
Saramago, e posso dizer que fora uma das mais interessantes incursões que fiz
no gajo desde conheci-o – falo assim como tivesse a autoridade de ter lido toda
a obra de Saramago [li apenas alguns (Ensaio Sobre A Lucidez, Ensaio Sobre A
Cegueira, O Homem Duplicado, O Conto da Ilha Desconhecida, Objecto Quase, além
deste)], entretanto, o que me faz querer um bem tão grande a este escritor em
especial, o mais numeroso em minha estante, são as ideias que leva consigo e
que consegue transpor para suas palavras. Uma dessas ideias, o ateísmo, é um
dos pontos mais conhecidos, não apenas de suas obras, mas também de sua
biografia, posto que poucas foram as pessoas que o defenderam como ele o fez,
transformando-o num dos maiores defensores desta causa, e, para além da
ideologia, escreveu um romance que foi o responsável pelo seu autoexílio nas
Ilhas de Lanzarote e que também foi o responsável por um silêncio entre o
Estado português que perdurou até quase sua morte, este livro foi O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, que, pouco que li sobre, fala sobre uma desmistificação
da Sagrada Família. Desde então permaneceu com seus romances alegóricos, como O
Ensaio Sobre A Cegueira, entretanto em 2009, qual não foi nossa surpresa, que
depois de um período de fragilidade de saúde, nos sai um romance que já é
provocativo inclusive pelo título: Caim. Pondo aí que, indo por aí dos oitenta
e tantos anos, Saramago não pensava nem objetava retroceder em seus pensamentos,
arrepender-se e desfazer muitos anos. O destino, irrefutável, quis que esta
fosse a sua última obra – o que se seguiu com Claraboia foi um livro que o
autor escrevera nos idos da década de 60, e que fora negado pelas editoras, e
que, a pedido do autor, permaneceria inédito até sua morte (na cronologia,
seria seu segundo romance depois de Terra do Pecado), mas, Saramago é um nome
tão popular e chamativo, que o livro hoje vai muito bem de vendas, obrigado, o
que aconteceu com Caim, que permaneceu muito tempo entre os mais vendidos do
Brasil quando lançado, e que provavelmente vá acontecer com o seu romance
inacabado que prometeram já ser lançado em 2012.
James Tissot - "Caim conduzindo Abel à morte" |
Passada
a biografia absolutamente parcial do autor, vamos ao livro, que conta com pouco
mais de cento e oitenta páginas, todas elas permeadas de um humor absolutamente
incomum ao pouco que li de Saramago, que, costumeiramente tem um humor muito
reservado, quando o tem, costuma ser negro, e uma linguagem austera; neste
livro, entretanto, vemos um narrador que nos vai saindo absolutamente irônico e
sarcástico do início ao fim, posto que sua temática e história nos pede que
seja assim, e, este mesmo narrador, nos mostra o Velho Testamento desde o Gênesis,
passando por Jó e indo até o Dilúvio, sempre com os comentários perniciosos do
narrador que não hesita, na cena em que Isaac vai a ser sacrificado por seu pai,
em chamar o deus vaidoso de filho da puta, conquanto o anjo que viria a salvar
Isaac e avisar que estava provado que Abraão era temente a deus justifica o
atraso responsabilizado algumas nuvens e que uma de suas asas estava com
defeito (a pena da galhofa machadiana!). A história, obviamente, vai ao
encontro do fantástico, mas vai guiada com mão firme, mesmo que a linearidade
seja interrompida por sonhos que poderiam ser ou não partes da realidade vivida
pelo protagonista Caim, que a cada vez que dorme acorda (ou sonha) estar numa
parte diferente do Antigo Testamento.
Importante
frisar a importância de passagens memoráveis como esta já citada e também
outras, como o despropósito da aposta entre deus e o diabo sobre a fé de Jó,
além das primeiras palavras, que habitavam ainda o Éden, a criação divina, que
se juntam a introduções antológicas, tais como A Metamorfose, O Processo (ambos
de Kafka) e O Estrangeiro de Albert Camus, onde o narrador nos confronta ao
sentido semântico da frase lá posta, pouco conclusiva. No mais, ainda há o caso
de Sodoma e Gomorra, as guerras santas travadas pelos Judeus, que mataram
muitos inocentes em nome do senhor deus, e aqui, a narrativa parece assumir nas
cabeças a voz do próprio Saramago, questionando até onde vai esta prova de fé –
aqui um dos capítulos mais interessantes do livro.
Isto,
sem falar no último capítulo que faz com que o livro seja arrematado com
maestria – que não hei de revelar – que, aos niilistas poderia ser o seu sonho
mais profundo, caso, e só caso, acreditassem em alguma coisa já dita. Como
objeto de estudo à religião, suscita, com louvores, as dúvidas que quer, como
literatura, é um Saramago puro-sangue, sujas as letras e vírgulas de seu
pensamento mais profundo (para os católicos, profano) sobre o rumo que tomou a
sociedade ocidental, que bem sabemos ser
orientada em parte pelo pensamento judaico-cristão, responsável, segundo
seu autor, por parte dos problemas que são refletidos desde muito tempo na vida
de todos. Caim é, enfim, o término perfeito para uma carreira bem sucedida como
escritor, sem lastimar nenhuma hipocrisia, posto que Saramago fora honesto aos
seus princípios desde Terra do Pecado, da década de 50 até este Caim, que prova
não somente seu papel de escritor, mas também de cidadão pensante.
eap
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