domingo, 30 de outubro de 2011

Carta ao pai

Eu não te tenho,
porque nunca tive,
não te alcanço mais,
porque nunca te alcancei.

Eu não te respiro,
porque sou anaeróbico.

Eu sou antigo,
o mais antigo,
na rocha, na putrefação,
onde deitou, lavou, ficou.

Eu rastejo, anelídeo, anelar.
Estou à boca,
estou perdido
em meio a tubos dormindo.

Eu aguardo à sombra...

Quando de meus dedos eu tive prazer?
Apenas quando seguro trêmulo o gatilho
-- os dedos de um verme, se eles o tivessem.

Ai, que eu queria te matar.
Ai, como eu queria te morrer.

E enfiar minha cara em carne viva
num copo de cachaça,
esperar ferver minha raiva
a todo instante,
em brasa de cigarro --
queimar a pele, os dedos,
a unha, a língua e os olhos.

Como eu queria te morrer!

Matar em mim essa massa incessante
de glóbulos vermelhos, de plaquetas,
elas, que me curam feridas -- por que?
se no mais, é fim morrer?

Eu provavelmente não me morreria por isso.

Mas queria que você fosse degolado,
sem que eu soubesse,
até que um dia, eu acordasse,
anaeróbico,
comendo, lentamente,
cada parte do cérebro
para entender aí o que se passa.

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