Eu
a amo sem nunca tê-la visto. Mas, e daí?
Quantos
homens precisariam para reconhecer
no
fundo do quarto o silêncio de uma voz?
Quantos
filósofos precisariam para reinventar
o
mundo em sua ficção da vida novamente
mesmo
sem nunca ter vivido sequer os vinte
por
cento da ponta desse iceberg chamado viver?
É
por isso que tenho dito: eu a amo sem nunca
tê-la
visto, e nem por isso me envergonho, pois,
mais
vergonha deveria ter o homem que nunca
amou
uma mulher em segredo – até para si mesmo –
e
da mulher que nunca terá o prazer de saber
o
quanto eu tenho me acabado pelos seus andares
pelos
seus cheiros, suas vozes, seu papo bom,
seu
desjejum de manhã, o modo como acende o
cigarro
ou
lê a revista Scientific American sem sentir culpa.
Triste
dela, meu deus, e triste de mim, que jamais terei
o prazer de falar estas frases apetitosas e suculentas
bem
no seu pé d’ouvido, bem assim, porque o prazer
seria
mais meu, e eu ainda o diria dessa maneira,
porque
pra ela, que tão linda, penso, que os homens,
esses bichos de garras e pelos sedentos
– a baba do cachorro nervoso escorrendo no canino –
já
devem cansá-la de dizer “nossa como você é linda”
“nossa
como você caminha lindo”, “nossa como você
simplesmente
existe”, "nossa como você vive"
e eu teria o prazer de lhe dizer fartamente
com
a boca cheia d’água, que eu te amei antes mesmo
que
pudesses sonhar em sonhar o sonho que se projeta
na
máquina dos sonhos dentro da cabeça do primeiro homem
porque
sequer te tinha admirado o corpo, para poder saciar
minha
vontade de tê-lo nas mãos e usar e ser usado por ele,
que
sequer eu te tinha pensado em te fazer um filho;
quando
um filho, na verdade, pensou em ser parido pelo mundo
eu
já te desejava, mulher. Eu já te amava antes mesmo
de
saber que existia amor, e quando dessas palavras vãs
que
a maioria das pessoas estuda nas gramáticas e dicionários –
que
antes de saber falar e de todas as línguas,
eu já dizia que tinha amor
eu
já dizia que dizer era pouco, e precisava agir mais.
Mas
isso tudo ainda é pouco, para dizer que eu a amo antes de tê-la visto.
Falando
assim, parece bobo, casto e até mesmo piegas,
mas,
você, que se ri de mim, sabe lá que terá no peito?
sabe
lá que trará na voz? Saberá lá se nunca pôde ter amor,
que
amor é para poucos; amor é para ela, que sabe bolar um
como
ninguém – como ela, e queria que ela me comesse vivo,
me
comesse nu, sem vergonha. Que diante dela eu perderia
até
o pudor de minhas partes pudendas, perderia o amargor
pelos
dias perdidos de cerveja e gordura da carne de porco
farta
no almoço e no churrasco de sábado, porque eu
caminhei
nas horas, abobalhado, pensando nela,
trôpego
no meio-fio e caí, na sarjeta, bebi daquel’água podre,
mas
nem senti. O centro da cidade me parecia ter a boa lembrança
dos
dias que nunca vivi com ela. Ela existe? Será que existe?
Os prédios me apontavam o céu e eu os negava,
como que para maldizer de deus, de toda a minha sorte,
de não tê-la na cozinha de minha casa, lavando as mãos
no sabão de pedra, e na pedra, talhar meu nome,
e na espuma, na bruma esparsa do sonho em que a fiz,
ela nunca me dizia eu te amo, e nós nunca nos pertencíamos.
Eu a amo antes de tê-la visto, mas isso é mero detalhe,
porque andando no centro da cidade, molhando o torrão
de açúcar no café, eu ainda a remonto, com extrema sensibilidade,
olhando a praça, seu relógio, o sol, no pico de meio-dia,
me mostrando todas as pernas das quais, jamais, nenhuma delas
será igual, nem tão mais fina, nem tão mais grossa
– uma batata, ó, deus, de se alimentar para o resto da vida –
o joelho, redondo, belo, liso, zeloso, com qualquer cicatriz
de uma queda da bicicleta, o cigarro, aos dezessete, semana passada,
ou quem sabe, há dezessete anos atrás.
Enquanto isso, eu ainda vou vivendo na puberdade de meus pensamentos
remontando sua graça, pelas cores de todas, pelas cores de muitas
nas vozes e leituras, na maneira do caminhar sobre o salto,
ou sobre a humilde e penitente sandália, dentro da qual, o pé
que nunca foi nem será beijado como eu o não beijaria,
porque eu a amo antes de tê-lo visto, e, sem tê-lo visto,
enxerguei-a por inteiro, na margem distante, de um verso qualquer.
eap