sábado, 20 de agosto de 2011

Um Morto


É ruim assim como morrer, reconhecer todos aqueles rapazes que hoje se desconhecem pingo após pingo d'água caídos na pia, por conta da morte dele -- logo dele, aquele que nunca sofria, não reclamava, não tinha vontade de falar sobre si. Era difícil responder como pairava o silêncio sobre as cabeças inertes a olhar para o centro da mesa, que era branco -- inseguro, sem graça, constrangedor, como aquele momento. Era uma larga mesa de seis lugares.

Dois amigos tomavam cerveja, dois não tomava nada, e outro ia degustando gole após gole uma xícara de café, e este ia produzindo o único barulho audível (além da gota da torneira sobre os pratos sujos, que já enchia um copo) que era a colherinha que tilintava nas bordas de porcelana branca. Cada qual tomava um lugar na mesa -- a ponta do lado da parede vazia.

Mãos sobre os queixos. O som das folhas resolve incomodar, lembrar de qualquer momento que não aquele, incompreensível, como aquele corpo de rosto amarelo dentro do caixão de madeira talhada. Ele quase sorria, e parecia ser o mesmo que meses, anos, sabe lá mais quanto tempo (parecia mesmo ter sido em outra vida), tinha chegado na porta de cada um, e com o carro, apertou cada um num mesmo espaço, com sorriso largo, o maior do mundo. Eles pensavam, e quando um deles (o da xícara) lembrou disto, disse com um sorriso, de canto de boca,

-- Ele tinha a maior gargalhada de todas.

Aquele dia tinha sido um retorno à memória falha de cada um daqueles rostos cansados, mal-barbeados e mal-humorados, sobre tudo aquilo que foram um dia, que não voltariam a ser jamais. O mundo como havia se apresentado para cada um deles não era aquela coisa estranha, distante e esquisita da juventude, que sentados aos bancos da rua que só tinha saída para a esquerda, diziam ser a coisa mais distante deles, que nunca seriam como seus pais, que a vida seria boa, que no futuro, seus filhos seriam herdeiros desta juventude que coruscava vitalidade. Se eram os Felas, seus filhos seriam os Felinhas. Já tinham tudo à ponta da língua, as histórias todas. Aquele, aquele sim, tinha a maior gargalhada de todas, não este que morreu, pois a risada dele era uma explosão, era algo que ardia, de dentro para fora.

-- Ele não aguentava a risada do Bebeto.

Lembraram que ele tentava, em vão imitar, dizendo, Era um negócio tipo assim, hm-mm-m, uhahahaharááá, e ele mesmo não se aguentava só em lembrar. Era um riso frouxo, inocente, às vezes. Mas nem sempre. Tinham na cabeça esta última data, que não era de recente, e naquele dia, unindo ponta daqui e dali o Morto conseguiu unir aqueles pedaços partidos de amizade. Mas ele bem sabia que nunca mais seriam os mesmos. Tinha a um lado, aquele que era pai, mas não perdia o ar pueril de sua personalidade, do outro lado, aquele enorme cara que abandonara tudo para fazer o que bem entendia, e era um tanto infeliz, mas sempre malandro, mais a frente, um rapaz que buscava qualquer coisa de futuro, de outro, um que achava tê-lo encontrado, e ia muito bem. Tudo estava na medida de ser belo, até o fim da noite, quando alguns se esmurraram, e a noite acabou no hospital.

-- A culpa é nossa?, pergunta um.
-- Não. Tu não ouviu a carta?

A carta era clara: a juventude era uma época boa demais para se dar de costas assim. Tudo era tão rápido, vário, e a vida adulta tinha chegado de tal forma, sorrateira, que lhe enfiou uma faca na garganta, e aquele grito incontido morreu em sua garganta, morto de vontade de sair ecoando por todos os lados, alardeando o fulgor de uma vida inconstante, um terror premeditado, era um Uivo, como disseram um dia na sua faculdade. E o uivo, não foi nada além que um engasgo seco na ponta da língua. E disto não passou.

De repente, a luz fraqueja, embacia-se, clareia e escurece, sob o gotejar do copo, que vira, esborrota de tão cheio, produzindo um estardalhaço sobre os pratos de vidro, e eles se assustam. O que não tomava nada olhou em volta, pôs a mão na cabeça, ajeitou o óculos, refez o penteado, levantou-se e ajeitou a louça. Era a sua casa. Ao voltar constatou que a cadeira do canto da parede estava fora do lugar, e uma borboleta negra emergia de lá. Olhou para os que nela estavam, sorriu, perguntou Foi algum de vocês?, ao que todos negaram, assustados. Ele sentou, serviu-se de uma xícara. O silêncio permanecia, ao que a borboleta saía porta afora, tomando o rumo do farfalhar das árvores.

Talvez morrer não seja tão ruim quanto permanecer aqui.

E,a,p'

Aos meus amigos.

0 comentários:

Postar um comentário