sábado, 3 de dezembro de 2011

Vergonha

-- Não quero porque não quero e pronto, mãe.

-- Deixa o menino ir.

Não se sabe ao certo. Mas o que é certo é que tinha medo. Não gostava. Tinha seus segredos, e quem não? Pior era de se saber o que era, depois via o menino, ia falar para a mãe, que já é sabido, gostava de implicar, coruja que era. Seria capaz de impedir que fosse para lá -- e não fazia outra coisa, depois do trabalho, para casa, e ainda tirava uma boa quantia para o aluguel, que ajudava, e ainda assim não dava, mas não deixava de comparecer, bom filho que era. Ia à casa da família de seu pai, aquele escroque que os deixou -- a mãe sempre perguntava: Notícias? Mesmo que dissesse que não, era sabido, coruja que era, que desconfiaria, e com razão, família é família, não é de se confiar. Aturava de tudo, desde a música aos cabelos, tudo era comentário, crítica, o caralho. Mas ia. O que lá o aguardava, não compensava de todo, mas era já um alívio breve, uma quase respirada de um ar, mais ou menos, puro. Acabou o menino que foi mesmo. E ficou inseguro, cheio de medos. No caminho, disse ainda no ouvido,

-- Fique lá em cima, na casa de sua madrinha, não desça por nada... E foi fazer aquilo, que lhe era vergonhoso, que lhe pesava, que lhe doía tanto fazer... Mas precisava. Ou era isso, ou não ir onde queria, no sentido literal da palavra. Já que se pagava para viver, para caminhar, para ir a qualquer lugar... E precisava tanto ir, sair, pegar uma condução, ônibus, busão, coletivo, sabe lá, qualquer coisa, para sair, caminhar, respirar, não ver tanta coisa ruim, chateações absurdas, que a sua vida lhe tinha imposto de uma hora para outra. Quando deu por si, abriu a porta, e quem do outro lado não estava, senão seu irmão, que observou atônito a vassoura nas mãos de seu irmão, que não teve muita reação, senão dizer, Entre... o menino entrou e olhou, meio assim-assim para o irmão que segurava uma vassoura numa mão e na outra um espanador, sem camisa, cansado, suado, desgastado, como não poderia deixar de ser... Na verdade, pouca coisa entrou em sua cabeça. Estava preocupado com outras coisas que seus onze anos lhe diziam ser preocupantes, mas sabia, ali dentro, na esquina da cabeça, que aquilo não era bom. Sentiu qualquer coisa de angústia, e saiu andando atrás da tia, que por ali perto estava, mas, era como se o chão tivesse estado a pairar no ar... E por aquele instante os irmãos pareciam estar agora a se reconhecer.

Na volta para casa, ambos estavam exaustos, um de tanto brincar, outro de tanto estudar e trabalhar, ganhar, sabe lá que quantia pífia àquela humilhante situação... no carro da outra tia, depois que chegaram, não deram palavra. Num dado momento da noite, quando a tristeza talvez bata de forma mais pungente, ou o frio da noite se sabe mais denso, o irmão mais velho disse ao irmão mais novo, olhando para a tevê,

-- Não fala nada pra ninguém.

Não iria precisar. Vozes além lhe diziam que alguma coisa estava errada, mas que não se preocupasse: o silêncio era um caos organizado. Estava ali, mas descansando, talvez aguardasse o momento certo para se dizer, e se dir-se-ia disto, um passar na cara, quando as lições de moral não tardassem, teria argumento à ponta da língua.

eap

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